Sociedade da Transparência
Byung-Chul Han é professor de Filosofia e Estudos Culturais da Universidade de Artes de Berlin e muitos de seus livros podem se inscrever no gênero dos estudos culturais devido às suas abordagens interdisciplinares de problemáticas contemporâneas do campo da cultura.
Han tem as seguintes influências da tradição filosófica alemã: Kant, Hegel Nietzsche, Heidegger e também Marx. Podemos dizer que aqui se encontra a base de sua formação. E a partir destes pensadores pertencentes à tradição, ele discute um leque variado de pensadores contemporâneos como Foucault, Hanna Arendt, Walter Benjamin, Baudrillard e Agamben.
No primeiro capítulo, Han diagnostica uma desarticulação progressiva da negatividade em favor da positividade, ou seja, a substituição de uma sociedade que consegue destrinchar entre o eu e o outro, porque reconhece limites e limiares, por uma sociedade sem lacunas nem vazios. Desta forma, a sociedade da transparência é um inferno do igual.
A transparência é uma palavra que evoca sinceridade, verdade, honestidade, virtude. A negatividade tem um significado oposto, tem um significado pejorativo, associado à ocultação, à falsidade, à mentira. No entanto, segundo Han, as coisas não são bem assim. O excesso de positividade tem o seu lado patológico, tem seu lado obscuro.
Han descreve transparência como um fenômeno econômico político e cultural cujo epicentro encontra-se nas sociedades ocidentais neoliberais economicamente mais desenvolvidas.
A negatividade abordada por Han não tem nada a ver com um pessimismo ou um niilismo. Não é isso. É uma defesa da ocultação não para fins malignos e egoístas, mas antes para dotar aquilo que está oculto de maior grandeza e significado. Transparência e verdade não são idênticos.
“As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As ações se tornam transparentes quando se transformam em operacionais, quando se subordinam a um processo passível de cálculo, governo e controle. [...] As imagens se tornam transparentes quando, despojadas de qualquer dramaturgia, coreografia e cenografia, de toda profundidade hermenêutica, de todo sentido, tornam-se pornográficas, que é o contato imediato entre imagem e olho. As coisas tornam-se transparentes quando depõem sua singularidade e se expressam unicamente no preço. [...] A comunicação alcança sua velocidade máxima ali onde o igual responde ao igual, onde ocorre uma reação em cadeia do igual. A negatividade da alteridade e do que é alheio ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual. (pág. 9; pág. 10; pág.11)
A informação ou a acumulação de informação por si só não produz qualquer verdade, lhes faltam direção e sentido. É precisamente em virtude da falta de negatividade do verdadeiro que se dá a proliferação e massificação do positivo.
A sociedade da positividade evita a negatividade em todas as formas porque a negatividade paralisa a comunicação. O valor da comunicação é medido apenas em termos de quantidade de informação e da velocidade de troca. A negatividade que a rejeição acarreta não pode ser explorada economicamente.
Outro ponto, a hiperinformação e a hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade.
“Transparência e verdade não são idênticas. A verdade é uma negatividade na medida em que se põe e impõe, declarando tudo o mais como falso. Mais informação ou um acúmulo de informações, por si sós, não produzem qualquer verdade; faltam-lhes direção, saber e o sentido. É precisamente em virtude da falta de negatividade do verdadeiro que se dá a proliferação e massificação do positivo. A hiperinformação e hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade, sim, a falta de ser. (pág. 24; pág. 25)
No mundo digital não há imprecisão ou ambiguidade. É nesta imprecisão e ambiguidade que nós podemos nos conectar com algo diferente de nós mesmos. É na negativa que descobrimos o outro. Nas imperfeições de alguém que descobrimos a beleza. No mundo digital sem imperfeições, apenas com uma tela, sem passado nem futuro, não há beleza.
No segundo capítulo, sociedade da exposição, Han observa que as coisas são transformadas em mercadorias, o valor cultural desaparece em favor de seu valor expositivo. Em vista desse valor expositivo, sua existência perde sua importância. A coação por exposição coloca tudo à mercê da visibilidade.
Perdemos o negativo no lugar do positivo. Devemos ser positivos em todos os momentos. O Instagram com suas imagens perfeitas, a Apple com a sua publicidade limpa ou a televisão com seus apresentadores carregados de maquiagem.
A sociedade exposta, segundo Han, é uma sociedade pornográfica, tudo está exposto. O excesso de exposição transforma tudo em mercadoria que está à mercê da corrosão imediata, sem qualquer mistério. O pornô aniquila o eros, mas também o sexo. A exposição pornográfica não causa apenas alienação do prazer sexual, mas torna impossível viver o prazer. Assim, a sexualidade se dissolve na performance feminina do prazer e na visão do desempenho masculino; o prazer exposto, colocado sob holofotes, já não é prazer. A coação expositiva leva à alienação do próprio corpo, coisificado e transformado em objeto expositivo que deve ser otimizado. Já não é possível morar nele, é necessário, então expô-lo e, assim, explorá-lo.
“ O valor expositivo depende sobretudo da bela aparência. Assim a coação por exposição gera uma coação por beleza e por fitness a “operação beleza” tem como objetivo maximizar o valor expositivo. Nesse sentido, os paradigmas atuais não transmitem qualquer valor interior, mas medidas exteriores, às quais se procura corresponder , mesmo que às vezes seja necessário lançar mão dos recursos violentos. O imperativo expositivo leva a uma absolutização do visível e do exterior. O invisível não existe, pois não possui valor expositivo algum, não chama a atenção. “ (pág. 34)
O capitalismo acentua a pornografização da sociedade, expondo tudo, como mercadoria e voltando-o à hipersensibilidade. E aqui cabe uma distinção que Han faz entre erótico e pornográfico. O corpo erótico pressupõe a negatividade do mistério e do ocultamento. Não existe erotismo na transparência. É exatamente aí que desaparece o mistério em prol da exposição e do desnudamento total que começa com a pornografia.
“O corpo pornográfico é raso, não é interrompido por nada. A interrupção cria uma ambivalência, uma ambiguidade. Essa imprecisão semântica é erótica. Assim, o erótico pressupõe a negatividade do mistério e do ocultamento. Não existe erotismo da transparência. É precisamente onde desaparece o mistério em prol da exposição e do desnudamento total que começa a pornografia.”( pág. 60)
Essa evidência pornográfica não pode ser entendida como algo puramente sexual, mas sim como termo amplo da sociedade da exibição superficial, aceleração, da falta de profundidade, intimidade e revelação.
A hipervisibilidade explora o visível através da bela aparência, ou seja, fitness, procedimentos estéticos, que visam anular os traços de negatividade para maximizar a exposição otimizada. É o que Han chama de tirania da visibilidade, a coação icônica para tornar-se imagem. O hábito de nos expormos nas redes sociais é um hábito que Han compara à pornografia.
O corpo pornográfico é raso, é marcado por uma positividade penetrante e incisiva, é direto, superficial e carece de abstração, interpretação ou contemplação. Esgota-se no mero prazer.
O erotismo promove a propensão humana para a curiosidade exploradora, é um poder conectivo e criativo primário. Não apenas aos nossos sentidos ou apetites carnais, mas também desperta e aprofunda a nossa percepção.
Nas redes sociais, nos dispomos apresentar aquelas partes do mundo que nos agradam. Nos encontramos apenas com os iguais e que pensam igual, e nos tornamos desconhecidos daqueles que pensam diferentes de nós. As consequências de tudo isso é que nossos horizontes ficam cada vez mais estreitos.
Barthes faz uma distinção de dois elementos da fotografia:
O primeiro elemento é studium. Pertence aos desejos descuidados, do interesse sem objetivos, do tipo: eu gosto/ eu não gosto, agrada e não agrada.
Segundo elemento: é um punctum, que interrompe o studium.
Punctum: são as imagens que não causam prazer, mas ferimentos e ataques. Por exemplo, fotos de reportagem. Punctum está intimamente vinculada à contemplação, onde se demora no olhar. O punctum se retrai ao olhar consumista, ao olhar voraz. O punctum não se manifesta logo, mas só posteriormente, num demorar-se recordativo. Quando não tenho a fotografia perto de mim e me lembro dela, penso nela.
Dentre as fotografias uniformes, Barthes cita as imagens pornográficas. Elas são rasas, transparentes e não apresentam qualquer ruptura nem ambiguidade.
“ Como em uma vitrine, onde se mostra uma única peça decorativa, iluminada, ela se volta completamente para exposição de uma única coisa: o sexo; jamais um outro elemento que pudesse ser tema de encobrimento retardo ou desvio. Obscena é a transparência que nada encobre, nada esconde, colocando tudo a vista.” ( pag64)
A sociedade pornográfica é uma sociedade do espetáculo:
“ Se a cultura consistisse de figuras gestuais, mímicas, narrações e ações especiais, então o processo de pornografização do visual hoje se realizaria como uma desculturalização [por contaminação]. As imagens pornográficas, desculturalizadas, não apresentam nada que possa ser lido. Enquanto imagens de propaganda, sua atuação é direta, táctil, infectiva. [...] Elas se esvaziam em espetáculo; a sociedade pornográfica é uma sociedade do espetáculo.“(pag. 67)
No capítulo 5, “,A sociedade da Intimidade” Han faz uma reflexão sobre a obra “O declínio do Homem Público”, de Richard Sennet. Han conversa com Sennet, onde ele desenvolve a tese de que a modernidade não é um mero teatro de representação, mas, sim, um mercado, uma vitrine onde consumimos intimidades. E essa exposição, segundo Han, é pornográfica.
No século XVII é , segundo Richard Sennett, o aparecimento do teatro mundi, no qual o espaço público é comparado a um palco. O teatro é o lugar onde se expressam os sentimentos objetivos, e não manifestações da interioridade psíquica. Há uma representação, e não uma exposição.
No mundo de hoje, ao invés do teatro onde as representações são lidas juntamente com as ações e os sentimentos, o mercado expõe, vende-se e consome-se intimidades. O teatro é um lugar de representação enquanto o mercado é um lugar de exposição.
“Formalização, convencionalização e ritualização não excluem a expressividade, pois o teatro é lugar de expressões, que são sentimentos objetivos, e não manifestações da interioridade psíquica. [...] Hoje, o mundo não é um teatro no qual são representadas e lidas ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõem, vendem e consomem intimidades. O teatro é um lugar de representação, enquanto que o mercado é um lugar de exposição. Assim, atualmente a representação teatral dá lugar à exposição pornográfica.” (pags. 79-80)
A cultura da intimidade e o mundo objetivo público caminham de mãos dadas. A ideologia da intimidade tem nas relações sociais um ponto de coesão, ou seja, elas são reais e autênticas e verdadeiras. A intimidade é uma forma de transparência, onde as emoções são desnudadas.
“A sociedade da intimidade desconfia dos gestos ritualísticos e dos comportamentos cerimoniais e formais; estes lhe parecem por demais exteriores e inautênticos. O ritual é uma ação a partir de formas de expressão externalizadas, que têm um efeito desindividualizador, despersonalizador e despsicologizador. Os que deles participam “são expressivos”[3], sem, no entanto, colocar a si mesmos sob holofotes ou ter de se desnudar. Mas a sociedade da intimidade é uma sociedade psicologizada, desritualizada; uma sociedade da confissão, do desnudamento e da falta pornográfica de distância” ( pág. 83).
No capítulo 7, “Sociedade da Informação”, vemos que a informação se transformou em mercadoria, a qual, por outro lado, dificilmente se transforma em conhecimento, pois está privada de toda a negatividade. Han, nesse capítulo, recupera Platão. A caverna de Platão foi estruturada como um teatro. Os habitantes da caverna são os espectadores de teatro diante do palco. Entre os presentes, está o fogo como pano de fundo. A caverna de Platão é um teatro de sombras projetadas na parede. Não são coisas reais do mundo, mas figuras teatrais. Sobre a pessoa que é arrastada para a luz aberta, Han observa:
“ Ela tem de se acostumar penso eu, se quiser ver as coisas que estão lá em cima. Em primeiro lugar, parece-me que tem teria mais facilidade em ver as sombras, depois as imagens de pessoas e de outros objetos espelhados na água, e por fim as próprias coisas e pessoas. Os que estão presos na caverna não veem as imagens das sobras do mundo real, ao contrário elas assistem a um teatro. Também o fogo é uma luz artificial. Na verdade, os presos estão agrilhoados por cenas, por ilusões cênicas. Entregam-se a um jogo, a uma narrativa. A caverna de Platão não apresenta, como se costuma interpretar, diversas formas de conhecimento, mas diversas formas de vida; a saber, a forma de vida narrativa e a forma de vida cognitiva. A caverna de Platão é um teatro. O teatro como um mundo de narrativa se contrapõe à alegoria da caverna. “ (pág. 88; pág. 89)
Na caverna, o fogo, enquanto luz artificial, gera ilusões cênicas, lançando aparências. Assim distingue-se da luz do sol (luz divina). O sol aniquila a aparência, o jogo da mimética e a metamorfose. Platão negava qualquer apresentação cênica, inclusive proibia o poeta em sua cidade de verdade. Ele classificava a poesia e a pintura uma mimese, uma imitação sem qualquer conhecimento sobre aquilo que imitam.
Contrariamente ao universo platônico, a sociedade da transparência é uma sociedade da informação. A informação é um fenômeno da transparência na medida em que está privada de qualquer negatividade. Éé uma linguagem positivada, operacionalizada.
As imagens midiáticas de hoje são simulacros que já não representam ente algum. A sociedade da transparência não padece apenas com a falta de verdade, mas também com a falta de aparência. A massa de informações não gera verdade. E quanto mais se liberam informações menos transparente torna-se o mundo. Resumindo, a hiperinformação não traze luzes na escuridão.
No início do seu livro “As confissões”, ( já resenhado aqui), Rosseau revela seu coração transparente, revela todas as facetas sórdidas de sua história pessoal. Ele revela uma infinita sede de transparência, mostra uma brutal e minuciosa sede de verdade, expondo a subjetividade sem concessões. Uma transparência totalmente oposta à teatralidade. Para isso, ele parte da premissa de que as máscaras e os penteados são meras poses. Elabora um projeto heroico da transparência total. Sua exigência por transparência do coração é um imperativo moral. Para isso rasga todos os véus morais, expulsa tudo o que é obscuro.
“ Mostrei-me como eu realmente era[...] Desnudei o meu interior, como tu mesmo vistes. Seu coração deveria tornar-se transparente como o cristal. O coração de cristal é uma metáfora básica de seu pensamento. “ Seu coração transparente como cristal não pode esconder nada do que nele se passa; cada emoção que nele surge é partilhada com seu olho e com seu rosto”. Exige-se a “ abertura do coração” “em virtude do que todos nós sentimos, todos os pensamentos se tornam comuns de tal modo q eu cada um , na medida em que assim se sente como ele deve ser, se mostra a todos como ele é. Rousseau convoca todos os seus semelhantes a se “desvelar” seu coração “ com a mesma sinceridade. Com isso Rousseau instaura a ditadura do coração.” (pág. 89; pág. 89)
A transparência digital não tem origem na transparência de Rousseau e seu imperativo moral, que Han chama de cardiográfica. Nele não se busca a moral do coração, mas maximizar lucros, chamar a atenção, visa a exploração máxima.
No capítulo 9, Han discutirá a sociedade do controle. Essa sociedade tem uma estrutura panóptica bastante específica. Ao contrário da sociedade desenvolvida por Jeremy Bentham de prisão circular, no qual o observador poderia ver todas as celas de um mesmo lugar , numa torre central. A especificidade do panóptico digital é que os frequentadores colaboram ativamente e de forma pessoal em sua manutenção. Em outras palavras, não há um olho central vigiando todos, numa hipercomunicação, onde todos controlam todos. Todos estão expostos à visibilidade e ao controle e se embrenhando na esfera privada. O controle total aniquilando a liberdade de ação, levando à uniformização.
Fico por aqui, e indico a “Sociedade da Transparência”, de Byung-Chul Han. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.