Shosha
Há muitas maneiras de se encontrar ou escolher um livro: uma recomendação bibliográfica, a indicação de um amigo ou mesmo a aposta de uma editora. Normalmente são esses os “caminhos” que sigo. Mas “Sosha” veio com uma recomendação de muito “peso” - o próprio escritor Isaac Bashevis Singer - que revelou, em uma entrevista, ser “Shosha” seu romance favorito. Então, ao tirar este romance da estante e levá-lo pra casa já tinha um primeiro e bom motivo para ler esta obra, uma história com acentuado lirismo que tem em Varsóvia do início da década de 30, cidade-cenário. E o narrador começa o seu romance com uma ironia desconcertante:
Eu fui criado por três línguas mortas - hebraicas, aramaico, o iídiche (alguns não consideram esta última uma língua) – e numa cultura que se desenvolveu na Babilônia”. Esta declaração pode ser interpretada como uma invocação aos mortos, que falavam, especificamente, o iídiche da Polônia.
Em seu discurso no Prêmio Nobel, Singer disse:
Em seu livro “Shosha”, Singer nos convida a ouvir as vozes desses fantasmas. O centro desse mundo é a Rua Krochmalna, um bairro judeu de Varsóvia onde o narrador, Aaron Greidinger, passou sua infância.
A metáfora dessa época é a pequena “Shosha”, uma menina cujo espírito infantil se recusou a crescer e a amadurecer devido a uma doença, mantendo-se criança tanto na aparência quanto na simplicidade de seu coração; não falava o polonês e nada de russo, se comunicava apenas pelo idioma iídiche. Desde então apenas cresceu fisicamente, mas manteve-se mentalmente inalterada. E quando crianças, Aaron Greidinger e Shosha se prometeram um ao outro, selando amor eterno. Ela sempre esteve a sua espera e nunca o esqueceu - seu único sonho de menina.
Aaron Greidinger cresce adquirindo toda a sua bagagem intelectual moderna. Tem acesso a vários escritores, romancistas e filósofos. Uma vida normal e repleta de possibilidades. E Singer, pouco a pouco, vai nos seduzindo com seu jogo do destino. Algumas oportunidades promissoras surgem para Aaron, mas quando tudo parece ser o caminho provável e lógico, o autor nos faz voltar à Rua Krochmalna, sua rua de infância, onde os fantasmas o chamam de volta.
Obra do destino? Essa é pergunta fica para o leitor. É num desses momentos que outro romance irreal entra pelas frestas da escrivaninha do narrador como um fantasma que se desdobra em mistérios.
Singer constrói não só uma rua inesquecível, mas uma cidade cenário que impressiona pela diversidade e, ao mesmo tempo, nos situa num mundo à beira de um colapso iminente. Pela primeira vez Singer quebra sua narrativa em torno da incerteza de que Hitler vai invadir a Polônia e destruir essas pessoas. Suas reações diversas - o fatalismo, o messianismo, a negação dos judeus poloneses sobre seu destino deixam à deriva as vidas pessoais que são tomadas logo a seguir por uma tragédia global.
A luta velada entre o que está escrito nos livros sagrados e o livre-arbítrio é a linha que costura o livro. O outro fio desse tecido da história é o amor de Aaron e a devoção a Shosha e as escolhas que é obrigado a fazer.
A menina Shosha adquire para Aaron a representação de seu vínculo com o povo judeu, suas raízes, sua inocência e a sua própria incapacidade de se defender do universo ao qual passou a fazer parte.
Ao optar em assumir suas origens, o protagonista que quase se rende à vida fácil, recompõe a humanidade que havia perdido, e descobre que a vida são páginas de um livro que jamais voltam para trás.
Certamente ainda irei ler outras obras desse consagrado escritor, mas tenho certeza que iniciei a leitura por um romance realmente imperdível.
E termino com a certeza que somente através da literatura somos capazes de imaginar todos os leitores ao redor da chama da memória de Singer esperando respostas racionais dos sopros misteriosos de seus “fantasmas”.