Os Maias
Alguns anos atrás li um artigo do Arnaldo Jabor fazendo uma inteligente comparação entre Eça de Queirós e Machado de Assis. Jabor é um Eciano convicto e sua argumentação excelente. Ele reconhece Machado como no trecho que reproduzo aqui, entre outras reflexões feitas por Jabor:
“... O grande Machado atingiu subtons que Eça nem tentou, por escolha. Machado é mais inglês; Eça é mais francês. Saído das costelas de Flaubert, Balzac e Zola, que ele pós-modernamente chegou até a "plagiar", Eça funda um realismo caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas que passa por traços grossos, pelo riso deslavado, por uma proposital "falta de sutileza" (que resulta depois sutilíssima) na tradição de um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência. Machado é mais, digamos, "nauseado". Deixa-se envolver por um pessimismo que o claro riso de Eça recusa”. (01.04.1997, Jornal O Globo)
Eça de Queirós ou Machado de Assis? Eu confesso que fico com o dois, mas revelo minha preferência por Eça, pelo riso que o gajo me proporciona e sua analise política impiedosa que faz sobre Portugal. Mas a cada um, suas preferências. “Eça” é a minha opinião.
Sobre o romance “Os Maias”, vou cair no lugar comum: é uma obra prima, maravilhosa. Aliás, posso revelar a mesma posição quando analisar outros romances do autor.
Essa obra já foi exibida na televisão, assim como Primo Basílio, e alcançou picos de audiências em função do brilhante trabalho dos seus realizadores. Assisti aos dois. Mas sem desmerecer a versão televisiva, o livro é bárbaro.
Vou comentar o livro por um viés nem tão novo assim: o tempo português, como contraposição ao tempo moderno das nações industrializadas no século XIX, na Inglaterra e França, em particular.
Sempre que Eça, ao longo de certo período comparou Portugal com a França, o saldo português é sempre devedor. Em “Os Maias”, o escritor realça num tom derrotista o fardo que persegue a importação de ideias e as consequências que isso trouxera ao país. A cidade que Eça de Queirós teatraliza destoa de seu conceito de cidade civilizada.
No romance “Os Maias”, ele irá se encontrar com a alta burguesia, generais, diplomatas, banqueiros, grandes proprietários de terra; enfim, outra classe social que poderemos chamar de “os moradores do andar de cima da escala social” da elite portuguesa. Os cenários promovem diferentes aspectos da sociedade e podemos identificar as diferenças que irão delinear os personagens e seus caminhos.
É na casa dos Maias que Eça vê essa elite e passa com eles suas horas lentas, granuladas de uma ampulheta. O Ramalhete, antiga morada da família Maia, era um casarão conhecido na Rua S. Francisco de Paula no bairro das Janelas Verdes. Esse casarão dentro da cidade de Lisboa funcionava como um micro espaço para onde convergiam tipos variados da cena burguesa portuguesa.
Esse casarão permaneceu vazio e inabitado durante anos. Santa Olávia foi outro lugar muito importante, escolhido pelo velho Afonso para colocar em prática seus planos de educação de seu neto Carlos por um professor inglês. Ao contrário do Ramalhete, em Santa Olávia existe a natureza, a paz, a família era o lugar de retiro dos momentos de crise familiar.
Quando Carlos finalizou o seu curso de medicina, retomou ao Ramalhete e começou uma restauração, e, para isso, decidiu mudar o ar clerical que cercava a casa:
“(...) tinha o aspecto tristonho de residência clássica que competia a uma edificação do reinado da Sra. Maria I: com uma sineta e uma cruz no topo assemelhava-se ia a um colégio jesuíta” (Os Maias pg 5).
Esse ar clerical que envolvia o Ramalhete mostra a mentalidade religiosa que cercava a família Maia e Portugal naquela altura. Carlos faz uma reforma mantendo a fachada, mas fazendo uma drástica modificação em comum acordo com um arquiteto inglês. Ele enche a casa de objetos, ornamentos japoneses, espanhóis mourisco, persas, holandeses e indianos. Porém, a reforma da casa, e esse luxo decorativo ganha um sentido extra no livro, pois a modernização da casa guarda semelhanças com o processo de modernização do país. Simboliza a reflexão do ideal reformista de sua geração.
No passado daquele casarão abandonado, o narrador nos mostra as ervas daninhas tomando conta do jardim, a cascatinha seca e uma estátua enferrujada de Vênus Citeréia enegrecida, tomada pela umidade. Com a restauração, a imagem ganha vida. O Ramalhete habitado representa a esperança e a vida, simboliza o fim de sua velha alma, demonstrando o modo como Eça via o país naquela altura.
Através de sua imaginação, Eça descreve a história dessa rica família, e o faz percorrendo a cidade de Lisboa e frequentando seus interiores, como o Ramalhete Santa Olávia, a Toca e a Vila Balzac. Diverte-se nas festas promovidas pelos tipos que criou. Pela burguesia mantém uma atitude de desprezo por serem utilitários, ligados ao dinheiro e fechados às emoções da arte, ligados a política e fechados ao luxo. Vilaça é a imagem desse burguês típico, acredita no progresso material, era filiado ao Centro Progressista e aspira cargos políticos. Aos políticos, guardava uma distância, uma atitude de preservação e certo asco do odor insuportável que eles exalavam. Eça ataca à retórica, Gouvarinho encarna essa ideia que Eça tem do político português.
No Ramalhete, um grupo se reunia: os autênticos aristocratas. Carlos e seu avô Afonso se destacam por serem representantes de outra linhagem, seres especiais de uma Lisboa, que segundo o narrador, era povoada por provincianos. Somente os eleitos podem conviver nesse ambiente invejado e admirado. Seus ideais diferem do grande comum português, eles vivem como um corpo estranho veem a arte e literatura como forma de realização da personalidade. Uma falange de “bons vivants” que se caracteriza pela opção do isolamento, divorciada da realidade que conspira para matar o tempo. Esse grupo diletante tinha na auto-satisfação sua principal ideologia, um diletantismo provocado pelos desejos realizados pela riqueza.
Tudo que perturbava o imobilismo em “Os Maias” vem de fora, do estrangeiro. É estrangeiro o arquiteto decorador que Carlos traz de Londres para tornar o Ramalhete de novo habitável, contrariando as opiniões de Villaça que pretendia levar seu amigo Esteves, arquiteto e político local. De fora, também será o educador de Carlos, um inglês que em Santa Olávia será o encarregado de dar uma educação dinâmica, voltada à preparação física e para as coisas práticas, o que escandalizará a todos. Ninguém daquele meio aceitava uma educação voltada para o corpo, ao contrário, a formação espiritual de orientação cristã com base no catecismo e no latim, era pré-requisito fundamental de uma boa educação. Do exterior também aparece Tancredo, um príncipe exilado, perseguido político que desencadeará a tragédia de Pedro. Será de fora que também aparecerá Maria Eduarda, amante e irmã de Carlos. De fora também virá Guimarães, tio de Dâmaso, amigo de Gambeta portador da caixa de documentos que irá terminar com o tórrido romance consanguíneo.
O tempo português que o romance encena, segundo o narrador, é um tempo ancestral, pausado, um ritmo típico da sociedade rural que repete os mesmos diálogos, os mesmos gestos e nas mesmas ocasiões. O narrador indica que a presença de pessoas de fora vindas do exterior alteram o ritmo morno da cidade, funcionando como encenação do choque entre o tempo civilizado (o tempo do relógio das grandes cidades) e o tempo do calendário das sociedades rurais.
O narrador introduz um tempo em que a ação não desloca a paisagem, ao contrário, as ações se dão dentro da paisagem. A função da paisagem em Eça é justamente definir o personagem. E é nesse contexto lento que os personagens vivem, falam e sentem.
“Uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios de cinco andares, separados por um corte de rua, formava toda a paisagem defronte do Ramalhete. E todavia. Afonso terminou por lhe descobrir um encanto íntimo. Era como uma tela marítima, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando nas variedades infinitas da cor e luz, os episódios fugitivos de uma pacata ecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó de ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglês...E sempre ao fundo o pedaço de monte verde negro, com um moinho parado no fins de tarde alto, e duas casas brancas ao rés de água, cheias de expressão – ora faiscando e despedindo raios das vidraças acesas em brasa; ora tomando aos um ar pensativo, coberto de rosados tenros do poente, quási semelhantes a um rubor humano: e de uma tristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas sob o tempo agreste” (pg. 134)
O narrador aqui encena uma paisagem bucólica envolta numa lentidão dos fins de tarde, mostrando uma variedade de cores e luzes de uma vida pacata, uma calma carregada de beleza, tédio e melancolia. O que de fato essa descrição nos mostra? Mostra Afonso da Maia, da janela do Ramalhete, totalmente ausente em de seus muitos dias de vida sedentária, observando a paisagem.
Carlos, como já foi dito, aparece no romance como alguém diferente do seu meio, com uma educação fora dos padrões portugueses. Fora educado com o propósito de intervir, participar de forma construtiva na vida do país. Seu avô investiu sua vida nesse processo, oferecendo o que de mais moderno havia em termos de educação: a prática de ginástica e o desenvolvimento do espírito.
Sua educação foi completada pelo curso de medicina, rompendo com uma tradição das velhas famílias portuguesas que geralmente costumavam orientar a educação de seus filhos para serem bacharéis, para mais tarde se tornarem desembargadores. Sua opção pela medicina atendia a esse propósito de uma vida ativa, prontamente abençoada pelo avô, o que suscitou críticas entre os frequentadores de Santa Olávia.
Em Coimbra, faz seu curso de medicina, nababescamente instalado, torna-se o centro das atenções. Em Celas, convive com a mais variada fauna de intelectuais e boêmios de Coimbra. Em Coimbra faz o seu primeiro contato com a literatura compõe sonetos e contos, participa de discussões filosóficas e literárias.
Terminado o curso, ele complementa seu aprendizado com uma viagem pela Europa, onde entra em contato com que há de mais moderno no campo da medicina. Regressa dessa viagem cheio de ideias e planos de ação para o trabalho. Mas à medida que o romance vai prosseguindo, veremos a atmosfera dolente da vida portuguesa contaminando seus propósitos. A lentidão da preparação do laboratório, as longas cavaqueiras que se seguem aos almoços no Ramalhete, o ritmo dormente das tardes lisboetas, a ausência de doentes, tudo isso vai minando sua vontade, levando-o a uma grande dispersão. O torpor da cidade, o movimento tedioso se apossa do consultório de Carlos.
“Do Rossio, o ruído das carroça, os gritos errantes de pregões, o rolar das americanas, subiam numa vibração mais clara, por aquele ar fino de novembro, uma luz macia, escorregando docemente do azul – ferrete vinha dourar as fachadas enxovalhadas, as copas mesquinhas das árvores de município, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar aveludado de clima rico pareciam ir penetrando pouco a pouco naquele abafado gabinete e resvalando pelos veludos pesados, pelo verniz dos móveis, envolver Carlos numa indolência e numa dormência..com a cabeça na almofada, fumando, ali ficava, nessa quietação de sesta, num cismar que se ia desprendendo, vago e tênue e leve fumo que se eleva duma braseira meio apagada; até com um esforço sacudia este torpor, passeava na sala, abria aqui e além pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de valsa, espreguiçava-se..." (pg. 71)
O tempo passa e a clientela não aparece, vemos Carlos abandonando a medicina, dedicando-se a escrever um livro sobre a história da medicina coincidentemente com o reaparecimento de Ega sua capacidade de concentração vai para o espaço, se dispersa.
Maria Eduarda surge em sua vida na forma de um tórrido romance, tenta se reestimular. Diante da presença da amada, o afeto traz um alento a sua vida, a ponto de repensar a possibilidade de escrever alguns artigos sobre “medicina antiga e moderna” Carlos sentia que as ideias “lhe surgiam com mais originalidade, a sua forma ganhava em colorido”. (pg358) Maria queria que ele trabalhasse “seria um orgulho íntimo dela, e sobretudo a alegria suprema do avô, mas a mansidão da natureza circundante mais uma vez o vence. Seus sonhos de glória, seus projetos de ação se transformaram em sonhos de amor.
O narrador retrata esse “tempo português” como um elemento inibidor de qualquer dinamismo, impulso criador ou de transformação. Esse tempo parado, como observa Isabel Pires de Lima em seu livro “As Máscaras do Desengano” (pg. 54), é apresentado desde o começo do romance, como o tempo coletivo português.
Após os incidentes do incesto que culminaram na morte de Afonso, Carlos se exila voluntariamente. Passado dez anos, volta e se reencontrar com a cidade de Lisboa. Constata que nada, absolutamente nada havia mudado. Esse tempo estagnado influenciará seu tempo subjetivo. Apesar das mudanças que a civilização trouxera para vida lisboeta, o mundo que gira em torno da aristocracia e da alta burguesia em Portugal na década de 70 permanece idêntico à época de Pedro da Maia e do velho Afonso. Esse tempo coletivo, parado e sonolento tem um peso simbólico, e o narrador faz Carlos dizer o seguinte:
“Nada mudara. As mesmas sentinelas sonolentas rondavam em torno da estátua triste de Camões. Os mesmos resposteiros vermelhos, com brazões eclesiásticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O hotel Alliance conservava o mesmo ar mudo e deserto..” (Os Maias, pg. 473)
Nada mudara, Carlos com seus olhos de estrangeiro impressionava-se com aquela gente. As mesmas pessoas vagando, a mesma paisagem vista como um “videotape”, a mesma melancolia, o tempo não havia passado. A modernização da cidade com suas avenidas davam-lhe a sensação de um trabalho não concluído.
A imagem do Ramalhete depois das reformas indicava novos tempos, mas a melancolia se encarregou de dar um fim a tudo:
“Dos jardins do Ramalhete que outrora havia sido reformado que simbolizava a esperança de tempos novos, sobrou a melancolia uma ferrugem verde de umidade cobria os grossos membros da Vênus Citeréia: O cipreste cerdeo envelheciam juntos como dois amigos num ermo; e mais lento corria o prantosinho da cascata esfiado saudosamente gota a gota na bacia do mármore...” (pg. 482)
“Os Maias” não deixa de ser também um retrato do Brasil em vários aspectos, nossas ilusões de grandeza, a religiosidade política, como brilhantemente Arnaldo Jabor apontou em seu celebre artigo fazendo comparações entre Eça e Machado.
E por aqui encerro esse texto. Falar sobre uma grande obra, sobre um consagrado autor pode parecer “chover no molhado”, mas é importante que o tempo de Eça, que os personagens de “Os Maias” sejam lembrados, para que continuem a nos fazer pensar, refletir, que nos façam companhia com seus silêncios em nossos tempos tão sem tempo, tão tecnológicos, para que o contraponto seja feito e, somente nesse momento, Eça possa se instalar com seus cenários e falas, nos mostrando a verdade existente e presente de “Os Maias” em nossos dias.
Aos que já leram essa bela obra sabem o quanto esse livro é repleto de sentidos. Aos que ainda não leram, reservem um tempo, se deixem levar pelas páginas desse clássico sem pressa, sem atender a celulares, sem checar mensagens e caixas postais – apenas se deixem levar por esse outro tempo pelas palavras de Eça. E boa leitura.
Fazem parte de nossa história. “Um Estado em que antecede a sociedade civil”. “Os Maias” é um romance que merece muitas discussões e também um lugar em sua estante.