Os Filhos da Viúva
Acho que já disse isso em outras ocasiões, mas vou reafirmar, aqui, as delícias de ser um livreiro. E divido com vocês algumas dessas razões.
Existe uma infinidade de autores, livros, temas, abordagens que assim como qualquer pessoa, eu simplesmente desconheço. A informação, em nossos dias, está mais veloz e não temos tempo de ler e saber sobre tudo que nos interessa ou que seria interessante conhecer. A isso eu chamo de “Ignorância Fundamental” que para mim se traduz num imenso alívio. Alívio? Sim! Alívio por saber que a cada momento posso me deparar com algo novo e arrebatador, é ter a certeza de que no percurso de minha vida, muitos autores e livros serão desconhecidos, ou não chegarei a conhecê-los por falta de tempo ou coisas do gênero. A delícia se esconde na infinitude existente na literatura, entre palavras e não somente nos números. Saber que sempre existirá alguém novo a conhecer e alguém para lembrá-los.
Além do prazer das “Constantes descobertas”, como Livreiro, existe um imenso prazer em indicar para alguém um autor, um livro, assim como também é gratificante receber indicações vindas de clientes, amigos e editoras. E esse foi o caso de Paula Fox.
Vamos ao ponto? Ok! Vamos lá.
Paula Fox alcançou reconhecimento como escritora aos 88 anos. Escritora de livros infanto juvenis conseguiu alcançar alguns prêmios da categoria, mas seus romances adultos foram esquecidos. Provavelmente a escritora viu sua obra sendo retirada dos catálogos e sendo lida em sebos americanos, mas o tempo foi generoso com ela ao devolver-lhe o devido reconhecimento em vida. Muitos só conseguem a consagração após a morte, como Sandor Marai, escritor que admiro imensamente. Mas existem muitos outros. O importante é que essa grande escritora foi redescoberta em vida e me senti muito feliz ao ler seu livro “Os filhos da viúva”, da editora Cia. das Letras.
A perfeição, a “verdade” com a qual a escritora narra e transita por seus personagens, sentimentos e acontecimentos, parece tão conhecedora que em alguns momentos parece uma história real, algo realmente vivido por ela e não fruto de sua imaginação. Muitas das questões levantadas no romance embutem uma sagacidade perversa, um ritmo dinâmico e sobretudo “pé no chão”.
O tema é a disfunção de uma família, ambientado no ano em que o livro foi lançado, em 1976, os personagens que compõe a história são excêntricos, muitos deles desagradáveis e nutrem um pelo outro uma hostilidade silenciosa.
Laura Maldonado está embarcando para África de férias em um cruzeiro com o seu marido Desmond que tem com a bebida uma relação extremamente íntima e conseqüências desagradáveis. Na véspera da partida, eles promovem um pequeno “bota-fora” em um quarto de hotel em Nova York para um grupo seleto de amigos. Entre os convidados estão seu amigo Peter Rice, um editor melancólico que Laura não vê há anos, seu irmão, crítico de cinema e gay, e sua filha vinda de um casamento anterior, Clara. A festa se desloca para um restaurante em Manhattan, em que membros da família destilam seus sentimentos pouco nobres como raiva e rancores oriundos de um passado mal resolvido.
A viúva que dá nome ao título do livro é Alma, mãe de Laura e Carlos, que criou Clara quando a filha abandou a menina (Clara). Nesse jantar, cheio de requintes de crueldade, Laura está escondendo um fato que levará todos ao maravilhoso e doce mundo da indigestão: a matriarca da família veio a falecer de um ataque cardíaco pela manhã. Mas somente Laura fica sabendo. E aí? Como fica tudo isso?
Esqueçam um pouco do enredo quando tiverem essa obra em sua mão. Paula Fox tem a capacidade de ir além do enredo, ela é uma poeta que não mostra apenas os mistérios do indizível, mas incute nos personagens o que não é dito como traição, humor, emoção e ironia. Cada personagem tem dentro de si um monólogo triste, apesar deles serem desagradáveis e de difícil relacionamento, não podemos deixar de assistir a este acidente existencial muito bem elaborado e coreografado.
“Os filhos da viúva” é um livro que se passa em um curto espaço de tempo. Tudo transcorre entre a noite e à tarde do próximo dia. Nas primeiras páginas, temos as festividades de um bon voyage começando em um hotel e continuando em um restaurante por perto. Alguns personagens – fora os membros da família - são introduzidos nas festividades até que tudo se encerre em um cemitério perto de Queens, em um funeral com todos os seis personagens presentes, acompanhados de algumas hostilidades e afetos mal resolvidos.
Um elenco variado com sensibilidades acentuadamente díspares, extravagantes, inteligentes, imprudentes, ultrajantes como Laura Maldonado, cuja vivacidade é ao mesmo tempo fascínio e uma arma. De seu casulo egocêntrico e sua arrogância beirando o burlesco, nada passa sem o seu crivo, ninguém fica fora do gancho da conversação, é a personificação da calamidade. Laura sabe que sua mãe morreu em um lar de idosos. Ela vai manter essa notícia longe de todos, para que o clima do “bota-fora” não seja quebrado. Laura abandonou sua filha Clara na infância, e não deseja uma conexão maternal com ela.
Paula Fox não nutre simpatia alguma por seus personagens, o que denota uma integridade férrea como escritora. Suas franquezas e suas fraquezas são cativantes, e quando se trata das nuances nas relações humanas, as verdades que são ditas possuem curta duração. O medo e as ansiedades paralisantes, as consolações filosóficas, o patriotismo não são acessíveis para as pessoas que ela escreve neste livro. O amor é vazio e problemático. As almas são ocas e suas mentes incertas. Para os leitores do nosso tempo, Paula Fox nos trás: o pensamento. Ela foi redescoberta e esse é o meu grande alívio.
Existe uma razão muito simples para ler “Os filhos da viúva: é um livro que apresenta personagens fortes, desequilibrados entre o desejo de ser exatamente o que almejam, mas acorrentados por laços familiares que os cerceiam. Uma família que pode ser tão igual e caótica quanto a qualquer família existente e conhecida, mas com uma escritora de pulso forte a denunciar e revelar suas facetas mais perversas e perdidas entre formalidades e frustrações. Um tema que faz refletir sobre as nossas próprias famílias. E o melhor é que ela não nos oferece o perdão, apenas a necessidade de refletir sobre esse tema, nem sempre fácil, e quem sabe tenhamos a sorte de perdoar a todos e também sermos perdoados.
“Os filhos da viúva é um daqueles livros que precisam ser lidos. Procure a livraria mais perto, anote o nome, compre e leve essa obra para casa. O que eu vou ganhar com isso? Nada, absolutamente nada, nada além do prazer de indicar um bom livro para ler. Boa leitura!