Livros > Resenhas

O Poder do Mito

Eu comecei a gostar de mitologia graças a Joseph Campbell, e o primeiro livro que li foi “O Poder do Mito”. Sabe aquele avô que sabe contar uma história? Você vai se sentir exatamente assim. Eu gostei tanto que comprei o DVD também. Já li esse livro umas três vezes, antes de ter o site bonslivrosparaler.com. Resolvi ler de novo, e confesso que foi ainda melhor. Sabe quando você se sente mais maduro para pensar sobre os assuntos do livro? Comigo as coisas são meio assim, uma das vantagens de ser mais velho.

Joseph Campbell tornou-se conhecido por seu famoso livro chamado “O Herói de Mil Faces”, um livro que mudou a percepção moderna de entender os mitos, onde ele analisa as histórias, diversos contos antigos e faz uma comparação entre eles chegando à conclusão da existência do monomito, isto é, uma estrutura comum a todas as lendas, mitos e histórias. No entanto, em “O Poder do Mito”, o autor aborda quase toda a sua grande obra de uma maneira bem didática, principalmente para aqueles não familiarizados com o assunto.

O livro é uma delícia, uma entrevista muito bem conduzida por Bill Moyers. A partir dele, comecei a pesquisar outros autores, como Mircea Eliade, Ernest Cassirer, entre outros. Não posso deixar de mencionar Octávio Paz, que foi o primeiro a me mostrar as semelhanças entre metáforas e poesia.

Para muitos, os mitos são uma mera curiosidade, algo que tem a ver com a arqueologia, que atrai a atenção de estudiosos, algo que se relacione a museus. Essa é a visão moderna, por mais que muitos sintam que esses deuses antigos não têm mais nada a nos dizer. As tradições mitológicas têm moldado nossa concepção da realidade e nossa interação com ela. Os mitos continuam se atualizando camuflados, sob vários invólucros e influenciando o inconsciente coletivo.

Em diálogos animados e expansivos, Joseph Campbell e Bill Moyers discutem como os mitos são pistas para o núcleo espiritual da natureza humana e abrem portas para a experiência humana através dos tempos, revelando nossos sonhos mais íntimos e aspirações por autorrealização, colaboração social e a possibilidade de transcendência. 

Campbell conseguiu reviver a mitologia. Ao contrário do que muitos pensavam, os mitos não eram histórias divertidas para contar em torno de uma fogueira. Pelo contrário, são histórias poderosas, cujo objetivo é guiar o espírito humano. Ele conseguiu provar que todos os mitos humanos eram essencialmente semelhantes. Ele chamou esse padrão comum de "monomito" ou "jornada do herói".

Assim como Carl Sagan, numa linguagem popular e fácil, popularizou a física em seu famoso livro chamado “Romance da Ciência”, Joseph Campbell faz a mesma coisa de uma maneira, diria quase lúdica, em “O Poder do Mito”, pois mistura a mitologia primitiva com as mitologias do cinema e as nossas histórias pessoais.

Para aqueles que não conhecem Bill Moyers, uma breve introdução. Foi secretário de imprensa de Lyndon B. Johnson. Foi apresentador de um programa chamado Bill Moyers Journal na televisão pública chamada P.B.S. A entrevista que ele fez com Joseph Campbell foi um enorme sucesso. Essa entrevista é que deu origem ao livro “O Poder do Mito”.

Como eu já disse, o livro é uma grande conversa feita no Skywalker Ranch de George Lucas, ele mesmo, o criador de Star Wars. É uma entrevista longa, mas gosto mais do livro por uma única razão. Dá para refletir melhor do que a entrevista em vídeo. O assunto é tão fascinante que no DVD às vezes você fica pensando em uma frase de Joseph Campbell e a entrevista segue e, quando você vê, já perdeu o raciocínio. Com o livro, a reflexão é favorecida. Mas eu li o livro e assisti ao DVD, e foi ótimo. Uma experiência maravilhosa. Se puderem fazer os dois, melhor ainda.

A história da cultura ocidental pode ser vista como uma história da desmitologização. Joseph Campbell faz o processo inverso: ele remitologiza a cultura. Podemos dizer que Campbell é um crítico das teologias ocidentais por negligenciarem o mito. Joseph Campbell incentiva os teólogos a valorizarem suas metáforas, sua poesia, suas histórias universais e a não congelá-las como doutrinas.   

O livro está repleto de imagens de arte tibetana e americana, fotografias de ritos de iniciação aborígine e desenhos de William Blake. Fala sobre a Grécia Antiga e nos fala também de Rambo e Guerra nas Estrelas.

Preparados para o passeio?

A grande pergunta que Joseph Campbel nos faz é: o mito pode ser poderoso para uma pessoa que vive nos dias de hoje? Podemos fazer alguma comparação entre nossas vidas e os personagens míticos? Para responder a essa pergunta, Campbell acredita que os personagens míticos agem como arquétipos da possibilidade humana: eles são confrontados com problemas e sua ação subsequente nos dá uma ideia de como a vida pode ser tratada.

 

Os mitos nos fornecem um mapa para cada ciclo da vida ou experiências que passamos. Joseph Campbell chama a mitologia de “a canção do universo” sintonizado por mil culturas e povos diferentes. Com o mito, toda a experiência pode ser empoderadora:

Um de nossos problemas, hoje em dia, é que não estamos familiarizados com a literatura do espírito. Estamos interessados nas notícias do dia e nos problemas práticos do momento. Antigamente (segundo Campbell), o campus de uma universidade era uma espécie de área hermeticamente fechada, onde as notícias do dia não se chocavam com a atenção que você era estimulado a ter para  se dedicar à vida interior, a aprender a magnífica herança humana recebidas por Platão, Buda, Goethe e outros, que falam de valores eternos e que dão o real sentido à vida.

A literatura grega e latina e a bíblia foram relegadas a um plano secundário no processo de educação, suprimidas em prol de uma educação mais afinada com os desígnios da sociedade industrial, onde o grande desafio está no mercado de trabalho. O resultado é que toda uma tradição mitológica do ocidente se perdeu. Em função de um ensino pragmático, perdemos (segundo Campbell) informações provenientes de tempos antigos que sempre deram sustentação à vida humana, construindo civilizações e formando religiões através dos séculos, e têm a ver com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos momentos de nossa travessia pela vida. E quando ignoramos os sinais deixados pelo mitos, o caminho da vida (nas palavras de Campbell) terá que ser percorrido por conta própria, e as chances de ser perder são grandes.

  

Toda religião é verdadeira quando pensada metaforicamente, mas você se mete em problemas quando começa a pensar nas metáforas como fatos. Basta vermos pastores, ou mesmo padres, interpretando passagens da bíblia de uma forma literal. Normalmente, vivemos em um mundo de dualidade: bom e ruim, verdadeiro e falso, mas a mitologia nos mostra que há uma união subjacente entre as polaridades, um Yin e Yang, onde sempre há algo de bom e vice-versa. Não há preto e branco.

A negação da mitologia e a ausência de experiências religiosas transcendentes é o que Campbell acha que levou os jovens para as drogas. Sei que muitos, ao lerem isso, devem provavelmente ter ouvido essa narrativa em algum “rehab”, mas não é disso que ele está falando, é algo maior. Ele viu nos mitos uma "experiência de significado". Ou seja, uma abordagem de narrativas que deram sabedoria e significado à vida humana. São histórias que nos permitem voltar para dentro de nós mesmos e receber uma mensagem profunda que é criptografada em símbolos, mas que ainda cumprem sua tarefa de expandir a consciência.

Os mitos são uma maneira de colocar você em contato com a experiência de estar vivo. Estamos tão obcecados com os valores exteriores, como dinheiro, status etc., que esquecemos o valor interno, nosso desenvolvimento interior, e esse é o verdadeiro valor, o que verdadeiramente importa.

 “As pessoas dizem que tudo o que estamos procurando é um significado para a vida. Eu não acho que é isso que realmente estamos procurando. Penso que o que estamos buscando é uma experiência de estar vivo, para que nossas experiências de vida no plano puramente físico tenham ressonâncias dentro de nosso próprio ser e realidade mais íntimos, para que realmente sintamos o êxtase de estar vivo. ” (pg 5)

 Os grandes romances podem ser instrutivos porque a única maneira de você descrever verdadeiramente o ser humano é através de suas imperfeições. Cá entre nós, não há nada mais desinteressante do que alguém com pretensões à perfeição, não é mesmo? As nossas imperfeições é que mostram as nossas singularidades, são apreciáveis. Thomas Mann chama essas imperfeições de “ironia erótica”, ou seja, aquilo que você está matando com a sua palavra cruel. Aquilo que é humano é que importa. É por essa razão que algumas pessoas têm dificuldades de amar a Deus; nele não há imperfeições. Seguindo o raciocínio de Campbell, podemos dizer que o que sentimos por Deus é mais temor do que amor. E o Cristo na cruz pedindo ao Pai que afaste seu cálice de sofrimento, e que chora por Lázaro morto, é aquele que desperta o nosso amor.

Os mitos são histórias de nossa vida, de nossa busca da verdade, da busca do sentido de estarmos vivos. Podemos dizer que aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Mitos se apresentam como sinais espirituais da vida humana, daquilo que somos capazes de conhecer e experimentar interiormente. O mito é o relato da experiência de vida.

Muitas culturas contam a história da criação, a história de um nascimento virginal ou de um salvador que vem, morre e renasce. É verdade que, em seu período de formação, as religiões tendem a beber umas das outras. No entanto, existem certos padrões que se repetem nas mitologias de cada cultura, embora não tenham sido expostos ao contágio.

Existem padrões repetidos, elementos temáticos em todos os mitos do mundo que Jung chamou de “arquétipos”. Carl Gustav Jung aprofundou suas pesquisas até chegar à conclusão de que os fenômenos que ocorreram com os nossos antepassados, a um nível coletivo e em diferentes culturas e sociedades, moldam a nossa maneira de ser. E ele fez isso explorando o conceito de “arquétipo”. Todos nós nascemos com a mesma ideia inconsciente de um modelo sobre quem é um herói ou mentor, como ficou evidenciado em outro livro de Campbell chamado “Herói de Mil Faces”. Através do estudo sobre mitos ao longo da história da humanidade, Campbell conclui que todas as religiões contêm uma verdade essencial.

E os mitos ajudam a explicar as nossas crenças e servem como modelos.  Como Cambel diz: “A mitologia é um mapa interior da experiência desenhada pelas pessoas que a viajaram”. É a experiência de estar vivo. Os mitos são desenvolvidos pela mesma fórmula: o herói começa sua aventura no mundo cotidiano em direção a uma região de maravilhas sobrenaturais, enfrenta forças fabulosas e obtém uma vitória decisiva. Essas viagens tratam do amadurecimento do indivíduo, da adolescência ao declínio do corpo e da morte, e de como vincular a sociedade ao mundo da natureza e do cosmos.

“O ser humano precisa contar histórias para tentar concordar com o mundo’Star WarsO Senhor dos AnéisA História Sem Fim são exemplos das mitologias atuais. A fantasia é útil para resolver imaginativamente problemas reais e oferecer uma rota de fuga e, acima de tudo, para que a ação ocorra em uma estrutura que não possa ser identificada com uma situação histórica específica e, portanto, suba para a categoria de princípio, poder abstrato e não seja pega como algo meramente circunstancial.

A mitologia começou com a reunião dos nossos ancestrais, com histórias sobre animais que eles matavam por comida e sobre o mundo sobrenatural que eles pareciam seguir quando morriam. O animal era sagrado e a caça tornou-se um ritual de sacrifício e isso foi mostrado a todos nós por meio da arte (as pinturas nas paredes da caverna), pela linguagem oral e pela religião. No entanto, quando os seres humanos passaram de caçadores de animais a plantadores de sementes, a semente tornou-se um símbolo mágico:

“Quando se corta o talo de uma planta, uma nova planta surge. A poda [é benéfica à planta. A coisa toda é apenas uma realimentação do ser” (pg 109)

“...Assim, nas culturas das florestas e do plantio, existe uma noção de morte que, de modo algum modo, não é propriamente morte, pois a morte é necessária à nova vida. E o indivíduo é o ramo de uma planta, Jesus usa essa imagem, quando diz: “ Eu sou a parreira, vocês são os ramos” Essa imagem proveniente da parreira é totalmente distinta daquela originária dos animais individualizados. Numa cultura de plantio, ocorre o cultivo de uma planta que vai ser a comida” (pg 109)

Este símbolo foi retomado pelas grandes religiões do mundo como a revelação da verdade eterna: que a vida vem da morte. As deusas surgiram como resultado de atividades agrícolas. A mulher dá à luz assim como a terra dá à luz as plantas. A mulher e a terra estão relacionadas. Na antiga Mesopotâmia, no Nilo egípcio, na Babilônia, a deusa é a forma mítica dominante.

Com a invasão dos povos semitas, o mundo dos sistemas da Deusa Mãe e as mitologias orientadas para os homens se tornaram predominantes. E até hoje lutam para se livrar desse fardo.

Devido ao mito da queda ou do jardim do Éden, a religião judaico-cristã condena a natureza em vez de restabelecer um acordo com ela. As consequências:

“Entretanto, nossa história da Queda do Éden vê a natureza como corrompida, e esse mito corrompe o mundo inteiro, para nós. Quando a natureza é vista como corrompida, todo o ato espontâneo é pecaminoso, devendo ser reprimido. Você terá civilizações e modos de vida completamente diferentes caso os mitos apresentem a natureza como decaída ou como manifestação da divindade em si mesma – e o espírito é a revelação da divindade que é inerente à natureza” (pg 105)

Hoje vemos conflitos religiosos acontecendo em todo o mundo, entre Ocidente e Oriente, por exemplo. Quando as religiões se atolam em suas próprias metáforas e se tornam literais, ou seja, fatos que aconteceram e se tornam leis, é algo errado. É como se você fosse a um restaurante, pedisse uma feijoada em um cardápio e começasse a comer em vez da feijoada, o cardápio.

 As religiões precisam se libertar de sua forma tribal para concordar com a vida hoje. Os Dez Mandamentos dizem: "Não matarás", mas também é dito na Bíblia: "Vá para Canaã e mate todos os que estão lá".

Na ausência desse sistema mitológico sólido que nos guie, hoje vemos a tendência de confundir heróis com pessoas famosas. A sociedade em que nós vivemos, racional por excelência, encara os mitos como uma afronta à razão.  jornada do herói, tema discutido no livro, não tem como finalidade negar a razão. Ao contrário, pela superação das paixões tenebrosas, o herói simboliza nossa capacidade de controlar o selvagem irracional dentro de nós.

Campbell nos indica que, quando nós lemos um romance, podemos achar vários heróis. A ausência de referências sólidas fez com que os jovens criassem a sua própria moralidade da melhor maneira possível, uma espécie de mitologia pessoal que corre o risco de adotar referências inadequadas e colidir frontalmente com leis ou estágios nos quais a ausência de consenso e diretrizes não foram iniciados.

Fico por aqui. Vale muito a pena em ler “O Poder do Mito”. Na sociedade contemporânea, nos afastamos cada vez mais dos mitos, dos heróis e das cerimônias rituais, reguladoras das práticas sociais. Perdemos o sentido das metáforas representadas, o mito é confundido com a história, não se aplica à vida interior do homem.

Na expressão de Max Weber, vivemos em mundo desencantado, os sonhos foram relegados, a totalidade foi perdida e a ciência tornou-se uma divindade e fora dela só existe a fé religiosa, algo totalmente diferente que Joseph Campbell nos ensinou.

Quando Campbell nos fala em heróis me vem à cabeça The Beatles, a Tropicália, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, a nossa cultura advinda de comunidades primitivas, dos índios, das civilizações africanas que habitam em nós, os valores libertários, que fazem parte da jornada do herói.

“O Poder do Mito”, de Joseph Campbell, merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 18 maio 2020 (Atualizado: 18 de maio de 2020) | Tags:


< Capitalismo Parasitário A Imortalidade >
O Poder do Mito
autor: Bill Moyers, Joseph Campbell
editora: Editora Palas Athenas São Paulo
tradutor: Carlos Felipe Moisés

compartilhe