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O Mundo de Homero

Pierre Vidal-Naquet é uma referência, um intelectual de renome internacional que conhece a fundo a Grécia antiga. E esse livro vai servir para mim como uma espécie de mapa para uma boa leitura no dia em que eu encarar os poemas “Ilíada” e “Odisseia”. O livro apresenta uma síntese das principais questões relacionadas à identidade de Homero e à Grécia antiga. Com base nos estudos que fez, ele nos apresenta um conjunto de hipótese relativas à gestação da Ilíada e da Odisseia.

Homero era cego, possuidor de uma enorme memória. E os antigos, não sem razão, consideravam que a memória de um homem cego tem um grau extraordinário de sofisticação. Homero não era um rapsodo, era um aedo. Os aedos eram cantores profissionais da civilização grega antiga. Eles aparecem na Ilíada e na Odisseia como cantores dos feitos dos deuses e dos heróis. Eles eram improvisadores ao som da música da harpa e da cítara. Aprendiam como Orfeu, a sua arte diretamente das musas. Mnemosine, amante de Zeus, deu a luz às nove musas também conhecidas como filhas da memória protetora das artes, ciência e letras.

Ulisses é um aedo. O que fundamenta a diferença dos aedos e dos rapsodos é que aos últimos não cabe qualquer papel na criação ou na improvisação. São recitadores (e não cantores) de obras alheias, difundindo-as e assegurando sua posteridade. Foram eles que ajudaram a fixar a obra de Homero, muitas delas gravadas em vaso.

A Odisseia contém uma reflexão sobre a função do aedo, sobre sua grandeza e os perigos que ele pode representar. Os aedos eram capazes, com um intervalo de poucos anos, de reproduzir, quase sem variantes, as epopeias puramente orais.

No entanto, os jovens gregos aprendiam a ler com Homero. O texto era apresentado sob a forma de rolos em latim, volumina (daí o termo volume). Ao lado dos textos de Homero, havia felizmente a imagem de Homero e dos vasos e das esculturas. Os volumina podiam ser feitos de papiro ou de pergaminho (pele de carneiro curtida e preparada). Assim como a bíblia é o livro dos judeus e dos cristãos, como Dante Aligherie é o poeta dos italianos. Os jovens gregos aprendiam a ler com Homero.

O mundo homérico, como dirá Pierre Vidal-Naquet, é um mundo poético:

“Os historiadores, ou sociólogos, os filósofos se apropriam dele, o que é normal e até legítimo, mas com frequência, querendo ultrapassar suas possibilidades. Sabemos que, desde a Antiguidade, os geógrafos se esforçam em vão para cartografar, de maneira segura, as viagens de Ulisses.” (pág. 109)

Homero é uma figura controversa, pois é lendária. Muitas cidades da Grécia asiática, como a Jônia e a Eólia, disputavam a honra de terem sido a cidade de nascimento de Homero. Esmirna e a ilha de Quios também são outros lugares que defendem serem o local de nascimento de Homero. Mas para responder a essa questão, é preciso levantar o seguinte ponto: em que idioma foram compostos os poemas homéricos? Pierre Vidal-Naquet responde a essa pergunta dizendo que não se trata do grego comum, mas de um idioma artificial que repousa sobre dois dialetos falados, sobretudo na Ásia Menor (hoje Turquia): o Jônio e o Eólio. O dialeto homérico não constitui uma língua falada de uma determinada região. É antes de tudo uma linguagem convencional baseada no jônico e em certas formas eólicas, arcadas cípricas e áticas de que se utilizou o autor da Ilíada e da Odisseia, e que influenciou depois os diversos gêneros poéticos.

 Os poemas homéricos são compostos de hexâmetros dáctilos, ou heroicos, é uma forma de métrica poética rítmica.  O ritmo do verso homérico é baseado na alternância entre sílabas breves e sílabas longas, muito diferente da métrica da língua portuguesa e outras línguas modernas, baseada nas alternâncias de sílabas.

O livro “O Mundo de Homero”, de Pierre Vidal-Naquet, não pretende oferecer-nos uma análise exaustiva dos versos da Ilíada e da Odisseia. O autor se concentra em certos pontos, convidando-nos à curiosidade para que os jovens se interessem por essas obras-primas da Antiguidade. É uma coleção de artigos acadêmicos que analisam várias linhas de pensamento, particularmente em torno da historicidade de Homero.

 Os poemas de Homero se caracterizam por uma rígida ética guerreira, na qual reis e heróis combatem, tendo como conceitos norteadores a honra (timé) e a virtude (areté). O guerreiro homérico visa nada mais nada menos que apenas a glória. Para se obter a glória, deve-se saber manejar as armas e ser um bom combatente, que é uma marca destinada à aristocracia

“Quando lemos a Ilíada e a Odisseia, não podemos esquecer que esses poemas eram destinados a serem recitados para um auditório de homens ricos e poderosos, 20 capazes de ir à guerra armados da cabeça aos pés: capacete, couraça, grevas, como se pode ver na armadura do século VIII, encontrada quase intacta numa tumba de Argos, ao norte do Peloponeso [...].” (pág. 15)

As etapas das viagens de Ulisses mostram que ele se encontra ora com seres superiores, ora com a humanidade viva e mortal, ora além dela. Ulisses encontrou-se com deuses como Circe e Calipso, que receberam Ulisses em seu leito. Circe transforma os companheiros de Ulisses em porcos. Avisado pelo deus Hermes, Ulisses evita o desastre e consegue reintegrar seus camaradas e ainda consegue que a deusa lhe dê conselhos de viagens bem úteis para voltar para Itaca. Calipso oferece bem mais, além do leito de amor, lhe dá a opção de ser um ser divino. Ulisses recusa. Opta por ser humano, quer reencontrar Penélope.

Outro deus que Ulisses encontra é Éolo. O deus Éolo vivia numa ilha na Eólia com os seus doze filhos. Seis filhos e seis filhas, todos casados entre eles. Foi presenteado por Zeus e recebeu o poder de despertar e acalmar os ventos. Quando foi visitá-lo, recebeu de presente uma sacola de couro com todos os ventos dentro.  No entanto, os companheiros de Ulisses abriram a sacola pensando que ali havia ouro. Os ventos varreram, eles que acabaram voltando à ilha de Éolo, mas este, enfurecido, se negou a ajudá-lo.

Após a tempestade, ele desembarca na terra dos comedores de lotós, os lotófagos. Um fruto que, quando ingerido, faz perder a memória e o desejo de voltar para o lar. A memória é o apanágio dos homens, e Ulisses se abstém de comer lotós.

 O ciclope Polifemo é um canibal, comedor de homens. Ele devora vários companheiros de Ulisses inteiramente crus e é vencido pela embriaguez. Polifemo é um homem de um olho só, faz parte de um povo que desconhece a agricultura e a vida em sociedade.

“Quando Ulisses e seus companheiros chegam a terra do ciclope Polifemo, este lhes pergunta se eles são mercadores piratas, não tendo a palavra “pirata” nenhuma conotação pejorativa, prova evidente de que nas representações dos poetas homéricos, a atividade comerciante era perfeitamente “natura” assim como a pirataria” (pág. 99)

 Logo após a divulgação da profecia, Ulisses e seus companheiros retornam ao mar e acabam se aproximando da ilha das sereias, que eram criaturas que atraiam os marinheiros com suas vozes maravilhosas e que acabavam provocando a morte deles

No mundo dos mortos não se come pão, eles apenas bebem sangue. Ulisses se encontra no mundo dos mortos com sua mãe e seus amigos de jornadas e outras mulheres ilustres. Encontra com o adivinho Tirésias, que lhe anuncia suas futuras viagens. Tirésias, segundo a mitologia grega, fora privado de sua visão e em consequência ganhou o dom da adivinhação. Ulisses vai ao seu encontro e ele diz que o herói chegaria até a sua casa, mas que lá encontraria problemas. Esse é o momento em que Ulisses está mais afastado do mundo dos vivos.

Troianos e Aqueus encontram equivalências entre os cristãos e sarracenos. Tiveram os mesmos deuses e fazem os sacrifícios. Não há problema de comunicação. A maior diferença entre eles está naquilo que chamamos de cidade: homens, mulheres, velhos, crianças. As mulheres são esposas legítimas. No leito dos aqueus só dormem as concubinas.

 Na Ilíada e na Odisseia, vemos a presença de deuses em campos opostos. Homero desce com todos para resolver suas diferenças na terra dos humanos. Atena, Hera e Posidon estão no lado dos Aqueus, que acabarão por vencer, enquanto Apolo e Afrodite são partidários decididos dos troianos. Duas deusas têm filhos entre os heróis envolvidos. Afrodite é mãe de Enéias; seduziu Anquises, primo de Príamo; além disso, deve a Páris Alexander ter recebido o pomo que a fez suplantar em beleza tanto Hera como Atena. Tétis era mãe de Aquiles com um mortal.

 Tetis desposou um mortal, Peleu, porque foi lhe profetizado que teria um filho mais poderoso do que seu pai. Zeus, rei dos deuses, é o pai de Sapedón, rei dos Lícios, engajado em campo troiano. A maioria dos heróis dos “reis” descendem direta ou indiretamente do próprio Zeus.

 Se você pensa que os deuses ficavam assistindo à guerra como um público de televisão, o desenrolar de toda a guerra de Troia, estão muito enganados. Eles tomam partido e se envolvem fisicamente na guerra. Afrodite e Ares são feridos no canto V por Diomedes, filho de Tideu. Atena está do lado de Aquiles por ocasião do episódio decisivo do duelo com Heitor. Ela engana o herói troiano assumindo a aparência de Deifobo, irmão de Heitor. Atena apoia Ulisses e Telêmaco durante toda a Odisseia.

“De todos esses encontros, de todos esses choques, entre homens e deuses, o mais espantoso é sem dúvida, a batalha impiedosa travada contra Aquiles, no canto XXI da Ilíada, pelo rio Escamandro, cansado de carregar cadáveres das vítimas do filho de Peleu. O rio tenta afogar o herói. É necessário que o próprio deus Hefesto venha a seu socorro, com o fogo de sua forja. Com a guerra do fogo contra a água, já estamos bem próximo das cosmologias que, no século VI antes da era cristã, serão criados pelos filósofos. Devemos acrescentar que, entre deuses, as injúrias “homéricas” são correntes? No canto XXI, Afrodite é amavelmente chamada de ‘mosca de cão’.” (pág. 61)

Como já havia dito, os deuses não têm apenas ligações de combate, mas há também amor. As deusas Circe e Calipso se envolveram com Ulisses. Eles intervêm na narrativa, muitas vezes disfarçados de um jovem pastor, como foi o caso de Atena. Posidon toma a forma do adivinho Calcas. Eles também podem transformar os homens. Dependendo da vontade de Atena, Ulisses pode ser um mendigo velhíssimo ou um homem forte em plena juventude. Os homens podem aparecer como deuses aos olhos de outros homens.

Zeus reina soberano na Ilíada apesar de alguns cantos na Ilíada dizerem o oposto. Mas algumas ideias essenciais que permeiam essa relação:

“A primeira é a do sorteio. É ele que permite atribuição dos lotes e consequentemente, das funções. A segunda é a de um “domínio comum”. A terra e o Monte Olimpo, morada dos deuses, não estão sob a soberania de Zeus. Ele deve contar com as outras potências divinas, inclusive Posídon, que, a partir do mar, pode “agitar o solo”, e também, de maneira surpreendente. Hades, senhor do reino dos mortos, aonde os homens só chegam sob formas sombrias impalpáveis. A terceira é expressa pelo termo vilão. Ela implica uma noção de hierarquia. Há certamente os iguais (ou pares), e esse é o caso, neste contexto, dos três filhos de Crono, mas também há os seres inferiores radicalmente afastados da partilha, como por exemplo, o próprio pai de Zeus, seus irmãos e sua esposa. Crono é relegado ao Tártaro, entre “os deuses de baixo”. (pág. 67)

Essas ideias constituem as ideias da polis grega. Existe uma polêmica sobre o nascimento da polis. A questão é: ela nasceu antes ou depois de Homero? A Ilíada não é concebível sem uma presença da polis. A cidade dos deuses nos dá uma pista de como se desenvolveu a cidade dos homens e no período arcaico. Os deuses tomavam decisões nos sorteios em Atenas, cidade na qual se baseia a democracia.

Os aqueus, que são um exército de coalisão, não é uma cidade no sentido clássico da palavra. Possuem, no entanto, as duas instituições essenciais: a assembleia, que reúne todos os guerreiros e é convocada por Agamêmnon desde o início da Ilíada, e o conselho, que reúne uma elite de guerreiros dentre os mais idosos.

Em Tróia, o conselho dos anciãos circunda o Rei Príamo. E Heitor, numa determinada ocasião, reúne a assembleia geral dos guerreiros.

O Olimpo é marcado durante toda a Ilíada pela divisão, o que se chamará mais tarde de stasi. Zeus intervém várias vezes para impedir que os deuses de combatam, ou, ao contrário, para dar-lhes toda a liberdade. Quando Aquiles faz secessão, a pedido de Tetis (sua mãe), Zeus favorece os troianos. Quando Aquiles retoma o combate, ele inverte a situação. Zeus ama seu filho Sapédon, mas a pedido do clã pró- aqueu, deixa-o morrer. Da mesma forma, tem simpatia por Heitor, que jurou e fez sacrifícios em homenagem a Zeus, mas acaba morrendo no dia fatal.

 Sozinho, Zeus é mais forte do que todos os outros deuses reunidos e tem carta branca para expulsá-los do Olimpo. O destino da cidade dos deuses é mais complexo de início porque é muito difícil retirar os deuses gregos da narrativa; a evolução da religião grega, tal como podemos imaginá-la, reforça o poderio de Zeus ao invés de enfraquecê-lo.

Toda cidade tem os seus deuses e os seus cultos: Atena, por exemplo, é soberana em Atenas. Zeus de Olímpia e o Apolo de Delfos são deuses que atraem todos os gregos. Para aproximar deuses de homens, será preciso inventar novos cultos.

 Os deuses se comunicam com os homens por meio de sonhos, os quais podem ser, às vezes, enganadores, Na Ilíada, Zeus informa Agamêmnon, em um sonho, que chegou a hora de tomar Troia. Para ver se o sonho é verídico ou não, é necessário um intérprete qualificado, como o adivinho Calcas.

 Na Odisseia há três adivinhos famosos: Tirésias, que está entre os mortos. Calcas é o equivalente no mundo dos vivos. E finalmente Haliterses, que vive em Ítaca. Mas o modo normal de comunicação entre homens e deuses é o sacrifício sangrento de animais. Os deuses estão livres para aceitar ou recusar o sacrifício.

“...A pedido de Heitor e de Helena, Hécuba oferece um véu magnífico a Atena e faz e faz voto “de lhe imolar, no seu templo, doze vitelas de um ano, se a deusa se dinar a ter compaixão pela cidade”. A sacerdotisa pousa o véu “sobre os joelhos da divindade”, isto é, de sua efígie, e repete o voto, “mas a resposta de Atena é: Não!” Essa recusa é um anúncio de desastre para os troianos. Nesse particular os deuses não podem ser coagidos.” (pág. 75)

 A cidade grega é um clube de homens, As mulheres não tinham poder de voto. Em Esparta as moças eram educadas como os rapazes e chocavam os atenienses. O imaginário grego, no entanto, criou mulheres guerreiras, iguais aos homens e até superiores: as Amazonas.

Na Ilíada, a mulher mais célebre chama-se Helena. Na Ilíada ela não gera filhos com Páris, porém tem uma filha cujo nome é Hermione, que Racine, depois de Eurípedes, transforma em personagem terrível. Helena é na Ilíada como muitas mulheres eram na Odisseia, uma intermediária entre dois mundos.

 O mundo homérico é um mundo poético. O grande assunto de Homero é a terra dos homens e, acima deles, a terra dos deuses. A terra e o éter que circunda o mundo eram chamados de Kosmo pelos gregos.

A grande originalidade da Odisseia em relação à Iliada, segundo Pierre Vidal-Naquet, reside na integração do tempo interior da narrativa. O monólogo interior. Na Odisseia, Homero faz Ulisses dizer para si mesmo:

“Paciência meu coração...” diz Ulisses. (pág. 115)

Fico por aqui e indico de olhos fechados esse livro que poderá ser importante para quem (como eu) pretende ler a Ilíada e a Odisseia. “O mundo de Homero”, de Pierre Vidal-Naquet, merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 09 fevereiro 2023 (Atualizado: 09 de fevereiro de 2023) | Tags: Grega


< Medéia Gota D’Água >
O Mundo de Homero
autor: Pierre Vidal – Naquet
editora: Companhia das Letras
tradutor: Jônatas Batista Neto
gênero: Grega;

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