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Hiperculturalidade: Cultura e globalização

“Hiperculturalidade: cultura e Globalização” é o quarto livro de Byung-Chul Han resenhado aqui no site. E devo informar que não será o último. Esse é o tipo de pensador que vai fazer você se sentir mais inteligente sempre quando o ler. Há muito tempo eu não lia um autor tão instigante. O tema de hoje é a hiperculturalidade. E o que vem a ser esse conceito?

Este é um pequeno volume que explora como o nosso mundo e nosso senso de cultura estão mudando. Estamos nos distanciando de nossos lugares de origem. O familiar e o exótico se fundem, assim como a comida. A cultura se desfaz, tornando-se uma hipercultura. Trata-se da dissolução de fronteiras e e criação de redes, , ou seja, uma forma heterogênea sem fronteiras culturais.

No primeiro capítulo, “Cultura como pátria”, Han se utiliza de Hegel na ênfase na relação da identidade cultural europeia. Ele invoca a importância do estrangeiro para a constituição da cultura grega. A congregação dos elementos nativos e estranhos formaram o espírito grego antigo. A Europa recebeu sua religião do Oriente.

Tudo, porém, o que satisfez a “nossa vida espiritual” a Europa recebera da Grécia. Junto ao nome Grécia é que o homem formado na Europa, em especial na Alemanha, pode sentir-se em sua pátria” Da estranheza em si aqui já não se fala mais. O estrangeiro é degradado a uma mera “matéria”. Antes o caráter estranho (Freudheit) era um elemento espiritual, uma forma. Depois do momento que “a humanidade europeia passou a se sentir em casa estando em “si”, o histórico foi descartado definitivamente dos estrangeiros que foram postos de lado” (pág. 13; pág. 14)

Han sinaliza que o mesmo estrangeiro, em Hegel, também é recusado na concepção eurocêntrica de pátria.

Em seu livro “Ideias para uma filosofia da história da humanidade”, Herder enxerga que tanto no norte, leste, oeste da Europa encontram-se sementes gregas e árabes. O que, segundo ele, comprova que a cultura europeia é tudo menos pura. A impureza é um elemento constitutivo da cultura. O estrangeiro não é uma doença, mas uma experiência.

No segundo capítulo, Hipertexto e hipercultura, Han nos mostra que as estruturas culturais de hoje estão todas conectadas. Conteúdos culturais heterogêneos se justapõem. Em outras palavras, elas se distanciam e tornam-se hipercultura.  A hipercultura é algo desprovido de referências locais, levará ao “fundamentalismo do lugar”. O que significa que o que estamos vendo nos dias de hoje é a tentativa de reteologização, remitologização, renascionalização da cultura em resposta ao hiperculturalismo, que é simplesmente a cultura da globalização.

No terceiro capítulo, “Eros da conexão”, Han aborda três diferentes formas de tempo: o tempo das imagens, o tempo dos livros e o tempo dos bits. O tempo das imagens pertence ao universo mítico, o tempo dos livros pertence ao tempo histórico, em fluxo linear que corre do passado em direção ao futuro. O tempo de hoje (o tempo dos bits) não tem horizonte nem mítico, nem histórico. O universo bit equivale ao tempo diferente da teologia (cujo atributo está no divino), da teleologia (cujo atributo está nos estudos filosóficos dos fins), hoje assistimos à  desteologização e à desteleogização.

A expressão da Microsoft “Where do you want to go today” é uma despedida do aqui. O mundo composto da hipertextualidade consiste em encontrar incontáveis janelas. Excesso de possibilidades, aumento de liberdade, através da desfactização que navega como um  turista hipercultural. A desfactização é que caracteriza a cultura nos dias de hoje.

“Turista hipercultural é um outro nome para desfactização da existência e do ser-aí. Ele não precisa primeiramente de modo físico estar a caminho de ser turista. Ele já está em si mesmo em qualquer outro lugar ou mesmo quando está a caminho. Não é que se abandona a casa como turista para voltar depois como nativo. O turista hipercultural já é consigo em casa um turista. Já está ali ao estar aqui. Não chega de modo definitivo a nenhum lugar.” (pág. 31)

No espaço hipercultural, como diz Han,  não se caminha, navegamos no que está disponível. Não há ponto de partida ou de chegada, um passaporte para uma vida sem sentido.

No quarto capítulo, “Fusion Food”, Han nos mostra as diferenças e as diversidades culturais. A globalização é um processo complexo que faz desaparecer a diversidade dos signos e as representações, figuras e temperos  e cheiros. A hiperculturalidade significa a abertura para o novo. E aqui Han nos faz uma revelação (que eu não tinha notado), que faz todo o sentido. McDonald´s e a cultura da Coca-cola não espelham mais a dinâmica da cultura. Por incrível que pareça, existem mais restaurantes chineses do que filiais de McDonald´s nos dias de hoje. É possível existir mais restaurantes que vendem sushi do que hambúrguer.  Cozinhas misturadas que se utilizam do hipercultural com uma variedade de temperos contra a unificação do gosto.

 

No quinto capítulo, “Cultura Híbrida”, Han retoma Herder, que caracteriza a Europa como uma planta oriunda de “sementes românticas gregas e árabes”. Os gregos, por sua vez, devem seu surgimento das mais diversas nações. Uma cultura que pode ser chamada de hibrida.

As identidades possuem diferenças híbridas. Essa hibricidade foi levada a outro conceito de multiculturalismo, a uma força formadora da cultura. O híbrido é uma mistura de tradições e significados, é tudo que conecta diferentes discursos.

Segundo Homi Bhabha, a hibricidade significa que as vozes estrangeiras estejam sempre de modo próprio. A hibricidade é uma construção de uma identidade que se assemelha apenas a si mesma. Han não vê assim. A hibricidade dialética não explica a hiperculturalidade atual, já que a vida atual trafega em vias mais amplas, incompatíveis com a vida de mão dupla da hibricidade.

Han rejeita a dialética antagônica de Bhabha. E recorre à ideia de rizoma de Deleuze e Guatari. Para Han, é nesse devir rizomático que a hipercultura se acomoda.

No sexto capítulo, “Hifenização da Cultura”, Han aprofunda esse conceito de Deleuze e Gautari, e rejeita a tese de Bahbha do “entrelugar”. E o que vem a ser esse conceito? Esse conceito foca na articulação das diferenças culturais. É o que define os “entrelugares”. Esse conceito se mostra como uma nova configuração e organização dos indivíduos na cultura partindo da ideia de pluralidade cultural. A cultura seria, portanto, aquilo que nos habita. E não podemos ser pensados fora dela.

Peguemos o exemplo das ondas migratórias para diversos países. Veremos que, através da diversidade, criam uma cultura dentro daquele país, construindo um novo território de existência. Deste modo, a cultura se apresenta como um lugar de instabilidade, de movimento, de processo de hibridismo.

Han  rejeita essa  ideia:

“O rizoma não tem “memória”. É, por assim dizer, disperso. Também nesse sentido. A rizoma-cultura se assemelha à hipercultura, que não é uma cultura de interioridade ou da lembrança. Uma descrição botânica do rizoma termina, sintomaticamente, com a seguinte observação: “ as partes mais antigas do rizoma sempre morrem na medida em que ele se rejuvenesce em suas pontas. Desse modo, não alcança, após uma longa série de anos, como outras radículas de muita idade, constantemente dimensões maiores, se torna apenas entre um outro” ( pág. 55; pág. 56)

É neste devir rizomático que acomoda uma hipercultura, de estruturas subculturais e culturais, dominantes em um primeiro momento; mas dispersas em um outro. O rizoma é, portanto, uma construção aberta cujos elementos heterogêneos jogam incessantemente uns contra os outros e são concebidos como devir. O lugar rizomático não é um lugar de negociação, mas de transformação e de mistura.

 A hipercultura é cultura  rizomática. Ela não tem memória. E é dispersa, não existe interioridade ou lembranças.

 

No sétimo capítulo, “A era da comparação”, Han discute a superposição de culturas. No mundo interligado por redes , a  alteração da cultura justapõe diferentes formas de saber, pensar viver e acreditar. Formas culturais diferentes umas ao lado das outras. A era da globalização é uma era da comparação. Uma era da multiplicidade. que será , segundo Han, dominada pela economia, pela lógica da comparação.

 

No capítulo oitavo, “Desaurificação da cultura””, Han cita  a propaganda da Microsoft “Where do you want to go today?”, a propaganda da Linux “Where do you want to go tomorow?” e o slogan da Disney “Are you ready to go?”

 Aura é um conceito de Walter Benjamin, uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais, seus principais elementos são a autenticidade e a unicidade. O brilho é concebido do brilho do aqui e do agora. A globalização troca de lugares, modifica os lugares. A globalização desinterioriza. As formas de expressão cultural se perdem no processo de distanciamento de seu lugar original. É essa ausência do local que caracteriza a globalização e a hipercultura. Graças à hiper-realidade da rede, o lugar se desintegra. Transmite a ilusão de “apropriar das coisas em virtude de suas distâncias”, desencadeando a impossibilidade do lugar.

No capítulo nove, “o peregrino e o turista”, Han diz que o turista de camisa havaiana é a figura do ser humano moderno. A estrutura de uma viagem peregrina é o “estar a caminho” e está ligada a uma origem e à chegada definitiva a uma pátria. Rumo a um mundo alternativo e romântico.

A hiperculturalidade produz uma forma particular de turista, que, ao contrário do peregrino, não conhece a diferença entre o aqui e o lá, e vive totalmente no presente, habita o ser-aqui, não sente saudade nem medo, viaja no hiperespaço dos acontecimentos, como um Cul-tour.

No capítulo dez, “Windows e Mônadas”, Han contrasta a ideia de mônadas, de Leibiniz, com o conceito de janelas do Windows, de Ted Nelson.  Para Leibniz, toda mônada é fechada em sim mesma, não se comunica com o mundo exterior. Apesar de fechada em si mesma, elas constituem um todo ordenado e harmonioso, pois são como “relógios que, apesar de independente, marcam a mesma hora.”. No entanto, como observa Han, o universo monadológico de Leibniz não é um universo em rede.

No universo hipertextual, a mônada não é fechada como em Leibniz:

“O leitor não é mais jogado em uma estrutura ordenada de sentido previamente dada, monocromática. Ao contrário, movimenta-se de modo ativo, estabelecendo de modo independente novos caminhos pelo espaço colorido do hipertexto. É um turista em um hiperespaço colorido. Nelson fala do “leitor ativo” ( “active Reading”). O leitor segue menos uma ordem previamente dada do que suas inclinações e interesses.” ( pág. 83)

O título do capítulo dez,  “Odradek”, é sobre um (vamos dizer assim) personagem do conto de Kafka chamado ”As preocupações de um pai de família”.

dradek é uma pequena esfinge, feita de fios e remendos. O enigma dessa esfinge é a sua própria existência. Sem função, sem sentido, dotado de uma quase fala e uma quase risada, Odradek é quase nada. Escapa de qualquer contexto funcional. Ele não está quebrado, não há sinal disso. Ele fica longe, em espaços intermediários, como escadaria ou corredores. Às vezes torna-se impossível vê-lo durante meses. Representa a teimosia das coisas. Detalhe: não faz mal a ninguém. Ele tem a sua própria lei, resume o narrador. Kafka pensa diferente sobre as não-coisas.

Ao contrário de Odradek, nos dias de hoje, vemos o infômato chamado Alexa, que, ao contrário de Odradek, tem uma morada fixa e é uma faladora. Odradek não responde a perguntas difíceis. Alexia responde a todas as perguntas e dá resposta prontamente.

Tendo em vista a digitalização, Kafka admitiria, nas palavras de Han,  que os fantasmas haviam conquistado sua vitória final contra a humanidade. As não coisas transformaram-se alimentos para fantasmas.

No capítulo onze, “A identidade hipercultural”, Han afirma que a característica de hoje reside na desintegração, na fragmentação, na pluralização do presente, do passado e do futuro. Desaparecem os contextos que dão sentido à identidade. O ser se dispersa em um hiperespaço de possibilidades e acontecimentos. O mundo composto hipertextualizado consiste, por assim dizer, de incontáveis janelas, nenhuma dessas janelas se abre para um horizonte absoluto. Um tempo sem sentido, pois é sem horizonte que se torna possível uma nova forma de caminhar e ver.

Com as janelas hiperculturais (em referência ao Windows), desliza-se de uma janela para outra, de uma possibilidade para outra, criando uma narrativa individual, ou seja, em vez de um eu monocromático, existe um eu multicolorido, um eu colorido.

“ A hipercultura não gera massas unitárias de cultura, uma unidade de cultura monocromática. Ao contrário, ela desencadeia uma individualização cada vez maior. Seguindo as próprias inclinações reconstrói-se a identidade a partir do fundo hipercultural de formas prática da vida” ( pág. 95; pág. 96)

O capítulo doze, “Inter, multi e transculturalidade”, inicia-se com um contraste entre Ocidente e Oriente no âmbito das peculiaridades de suas culturas. Tratando-se do cenário hipercultural.

Han menciona que interculturalidade e multiculturalismo são fenômenos que tiveram contexto no nacionalismo e no colonialismo. Baseada na essencialização da cultura, a interculturalidade aspira ao diálogo entre essências culturais. A nacionalização, a etnização da cultura também inspira nelas uma alma. Trazem entre as culturas uma relação dialógica.

Enquanto o multiculturalismo deixa pouco espaço para a compreensão ou reflexão mútua, uma vez que procura resolver as diferenças culturais através da integração ou da tolerância, a transculturalidade é definida como a transgressão das fronteiras culturais que levam de uma unidade à outra. Criando conteúdos heterogêneos e justapostos que não se distanciam uns dos outros.

No espaço hipercultural, no hipermercado de culturas não se passeia. Formas e  representações perderam o seu lugar originário, é oferecido um hiperespaço sem fronteira e limites. Não se passeia, mas se navega. O passeio não é uma forma de andar hipercultural

No capítulo quatorze, referente à “Apropriação”, Han define uma outra característica da hiperculturalidade. A apropriação do outro acarreta uma transformação do próprio; ambos se transformam, produzindo novas diferenças. A separação entre o próprio e o estrangeiro dissolve-se na diferença entre o velho e o novo.

Sem apropriação, não há renovação. A hipercultura é justamente esse desejo de apropriação de renovação. Quem se apropria do outro não fica igual.  Outro apropriado se transforma. E o consumo é uma forma de apropriação.

A pergunta que Han nos coloca é: como a mistura de raças, religiões e línguas poderia contribuir para a “Longa Paz”, que é o título do capítulo quinze? A “Paz Perpétua”, de Immanuel Kant, se constrói porque a razão tem mais força do que poder, e a razão condena a guerra como procedimento do direito, e torna o dever de paz um dever imediato, que não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si.

Para Han, a razão sozinha é claramente incapaz de realizar a a paz perpétua. Na prática, a razão é impotente. A paz mundial não repousa no isolamento, mas na mistura e miscigenação das nações e dos povos. Se, para Nietzsche, o nacionalismo é na sua essência um violento estado de emergência imposto por uma minoria a uma maioria. A paz mundial hipercultural não teria a sua origem na separação, mas na mistura de nações e povos.

No capítulo dezesseis, Han analisa a “Cultura da bondade”. Neste capítulo, ele menciona que nem a cortesia nem a tolerância são gentis, uma vez que que se baseiam em uma limitação. Ambas estão ligadas a um código cultural  que são ligadas de forma diferente:

“Ao contrário da cortesia, a gentileza, a amabilidade, opera de modo desregrado. Justamente o seu desregramento a capacita a uma efetividade mais ampla. Ela gera um máximo de coesão com um mínimo de relação. Onde o horizonte se desintegra nas mais diferentes identidades e concepções , ela provoca um ser-participante, um tomar-parte ou ser-envolvido, um continuum de descontinuidades. ( pág. 125)

Para fecharmos esta resenha sobre a hiperculturalidade, Byung-Chul Han nos abre a perspectiva de observarmos que muitos novos modos de vida estão surgindo através das novas tecnologias mediáticas e da globalização. O hipercultural é o resultado de todas essas transformações no cotidiano do homem contemporâneo. A velocidade acelera a aproximação dos espaços culturais, abolindo a distância entre fronteiras, criando conexões associadas à hiperculturalidade.

Indico “Hiperculturalidade: cultura e globalização”, de Byung-Chul Han, como um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 27 novembro 2023 (Atualizado: 27 de novembro de 2023) | Tags:


< A sociedade do cansaço Infocracia >
Hiperculturalidade: Cultura e globalização
autor: Byung-Chul Han
editora: Editora Vozes
tradutor: Gabriel Salvi Philipson

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