Hereges
“Hereges”, do escritor Leonardo Padura, é um livro surpreendente. As comparações são invitáveis com o “O homem que amava os cachorros”, do mesmo autor. Mas posso dizer que são romances diferentes. Este livro é um trabalho (assim como “O Homem que amava os cachorros”) feito em camadas que entrelaçam várias histórias relacionadas, mas distintas, como a vida de Daniel Kaminsky, judeu que chegou a Cuba em circunstâncias trágicas; a história de Elias Ambrosios, judeu sefardita, que viveu no século XVII em Amsterdã e que foi aprendiz de Rembrandt; e a de Judy, uma menina adepta de uma seita chamada Emo em Cuba. Falaremos sobre essa seita mais adiante. O romance “Hereges” é o cruzamento perfeito entre o romance histórico, o romance social e o policial:
“muitos episódios narrados se baseiam em uma ampla pesquisa histórica e, inclusive, foram escritos com base em documentos de primeira mão, como é o caso de Javein Mesoula (Le fond de l’abîme), de N. N. Hannover, um impressionante e vívido testemunho dos horrores e massacres de judeus na Polônia entre 1648 e 1653, texto com tal capacidade de comover que, com os necessários cortes e retoques, decidi retomá-lo no romance, cercando-o de personagens fictícios. Desde que o li soube que não seria capaz de descrever melhor a explosão de horror e muito menos de imaginar os níveis de sadismo e perversão a que se chegou na realidade vista pelo cronista e por ele descrita pouco tempo depois. Mas como se trata de um romance, alguns acontecimentos históricos foram submetidos às exigências do enredo dramático, em benefício de sua utilização, repito, romanceada”. (nota do autor)
O livro começa com a definição de hereges de acordo com o Diccionário de la Lengua Española: Herege.1 Pessoa que nega algum dos dogmas estabelecidos por uma religião|| 2. Pessoa que discorda ou se afasta da linha oficial de opinião seguida por uma instituição, uma organização, uma academia etc[...].coloq. Em Cuba. Diz-se de uma situação: [Estar herege] Estar muito difícil, especialmente no aspecto político ou econômico.
Vamos ao romance?
A primeira camada do livro começa em 1939, quando o navio S.S. Saint Louis atraca no porto de Havana com novecentos e trinta e sete judeus a bordo autorizados a emigrar pelo governo nacional socialista alemão.
Entre os passageiros do Saint Louis, estavam o médico Isaías Kaminsky, sua esposa Esther Kellerstein e a pequena filha deles, Judith, ou seja, o pai, a mãe e a irmã do pequeno Daniel Kaminsky. Todos estão à espera de uma autorização para desembarcar. O menino, Daniel Kaminsky, e o seu tio Joseph tentam seduzir as autoridades cubanas com um tesouro que traziam escondido: uma pequena tela de Rembrant, na posse dos Kaminsky desde o século XVII. Essa tela havia sido submetida à avaliação de peritos e profundos conhecedores da pintura holandesa do período clássico, que confirmaram que era uma tela da série tronies de 1640. O termo tronie é uma forma de pintura de gênero em formato de retrato, que ocupou um lugar especial nas obras de Rembrant como um novo produto de mercado de arte durante os seus primeiros anos em Leiden. Pois bem, esses refugiados judeus atracados no porto de Havana haviam sido rejeitados nos EUA e no Canadá. E a comunidade judaica americana pressionava o presidente Roosevelt para que o presidente cubano Brú aceitasse os refugiados.
O presidente Brú negociava dinheiro para sua conta com o governo americano, algo em torno de 250 mil dólares, como forma de sair da pressão internacional. No entanto, havia em Cuba os militantes nacionais socialistas. O presidente Brú pediu mais dinheiro aos americanos, o que lhe foi negado. Mas os nazistas, especificamente Joseph Goebbels, para piorar a situação dos judeus, havia mencionado às corruptas autoridades cubanas que os viajantes tinham fortunas em seu poder.
O presidente Brú, informado dessa mentira, deu o seu veredicto: só seria possível o desembarque na Ilha sob a condição de entrega de meio milhão de dólares ao setor de imigração. No período das negociações difíceis, que durou muitos dias, aconteceu o pior.
O jovem Daniel Kaminisky e seu tio saíram do navio para negociar o quadro de Rembrandt com as autoridades alfandegárias cubanas a fim de liberar seus pais e irmã que estavam no navio esperando para desembarcar. Na manhã de 2 de junho de 1939, as máquinas do navio S.S. Saint Louis puseram-se em movimento em direção ao porto alemão, ou seja, em direção à morte.
O jovem Daniel Kaminsky via de longe seus familiares, o pai, a mãe e a irmã, separando-se dele. Apesar de sua tenra idade, sentia uma vontade de pular e nadar em direção ao navio. Mas seu tio Joseph, que conseguiu ficar em Cuba, também inconsolável, aceitou o destino. Naquele dia terrível, Daniel era ainda criança, e o pranto o impedira de dizer algo aos pais, à irmãzinha, mas desde então carregava essa incapacidade verbal como culpa. Setenta anos depois, outro descendente, dessa vez Elias Kaminsky (filho de Daniel Kaminsky), pede ao detetive Mario Conde que rastreie o caminho de seu pai e de seu infortúnio em Cuba e a difícil tarefa de investigar o paradeiro da pintura, que, surpreendentemente, reapareceu no mercado de arte internacional.
Na segunda parte do livro, “O livro de Elias”, Leonardo Padura remonta a meados do século XVIII na cidade de Amsterdã, época de efervescência cultural, econômica e religiosa, com um alto grau de perfeição e rigor artístico.
Em sua narrativa, podemos visualizar as ruas e os canais da cidade holandesa. Podemos ver também o rico patrimônio artístico da pintura flamenga desse período. Foi um período tolerante, em que judeus sefarditas (refugiados da Espanha e Portugal) e asquenazes (Europa Central) gozavam de plena liberdade nessa cidade calvinista. No entanto, Elias Ambrosius Montalbo de Ávila, um adolescente (antepassado dos Kaminsky) apaixonado por Rembrandt, começa a trabalhar em seu ateliê e acaba cometendo uma heresia ao empresta a sua fisionomia (ao seu mestre Rembrandt) ao famoso quadro Jesus de Nazaré, em que aparece em sete painéis. As consequências desse ato foram terríveis, uma heresia para os judeus, que na época proibiam a pintura de figuras de culto e o empréstimo de sua imagem a Jesus, filho de Deus para os cristãos e falso messias para os judeus. Os líderes rabínicos e comunitários foram implacáveis em seus julgamentos, o que acabou em ameaça de excomunhão. O resultado de toda essa pressão culminou na fuga de Elias Ambrosius Montalbo de Ávila para a Polônia, que logo veio a enfrentar uma espiral antissemita, levando à morte, em circunstâncias atrozes, dezenas de milhares de judeus entre 1648 e 1653. E, por alguma razão, um dos painéis de Rembrandt acaba nas mãos dos Kaminsky. O diálogo abaixo nos mostra esse diálogo difícil com que Elias Ambrosius discutia seus pontos de vista com o seu tutor, Ben Israel:
“A torá nos proíbe de adorar falsos ídolos; aliás, é um dos três preceitos invioláveis, e por isso condena o ato de representar imagens homens e animais ou adorá-las nos templos ou nas casas. Mas não fala de aprender a fazê-lo: e eu só quero que o senhor me ajude a aprender com o Mestre. O que vou fazer depois é minha responsabilidade consciente. Vai me ajudar ou delatar?” Ben Israel afinal riu abertamente. “Cada vez que precisava lutar com sua gente, Moisés se perguntava por que o Santíssimo, bendito seja Ele, havia eleito os hebreus para cumprir seus mandamentos na Terra e propiciar a chegada de um messias. Somos a raça mais rebelde da Criação. E isso nos custou um preço, você sabe... O pior é que questionamos tudo, mas racionalizamos esses questionamentos. Você tem razão, nada o impede de estudar. Mas sabe de uma coisa? Eu me sinto culpado por você ter aprendido a pensar assim. Além do mais, a Lei é clara quanto a representação de figuras que possam ser idolatradas. A proibição se refere sobretudo à construção de falsos ídolos ou pretensas imagens do Santíssimo, mas, digo eu, também dá espaço para o ato de criar se esse empenho não conduzir a idolatria. E cada nova geração, você bem sabe, tem obrigação de estudá-la, porque os textos devem ser interpretados no espírito dos tempos, que são mutáveis. Agora, independentemente de como interpretamos a Lei, eu lhe pergunto: você será capaz de parar no limite da linha? Estudar e só aprender, como disse, pelo gosto de fazê-lo?” (pg 218, 219)
A terceira parte do livro mostra o desencantado detetive Mario Conde tentando desvendar o desaparecimento de uma menina chamada Judith Torres. E voltamos para a Cuba contemporânea, agora em 2008. Uma garota brilhante de 18 anos de idade desapareceu misteriosamente. Essa menina pertencia a uma tribo urbana chamada “emo”, um grupo de jovens que desafiava a ortodoxia de um regime cuja imaginação é zero e nada receptivo a excessos “tribais”. Para facilitar a vida dos leitores deste blog, vamos esclarecer o que são os emos. Os emos fazem parte de uma tribo urbana, de estilo informal, cujos membros comungam de uma visão de mundo. Vem do termo emotional hardcore. São pessoas emotivas e sensíveis, cultivam a melancolia, a tristeza proveniente de decepções familiares. Têm suas bandas e música preferidas.
No Brasil, a banda de rock Fresno é, segundo alguns, inspirada na filosofia “emo”. Os que aderem a esse grupo, em grande medida o fazem pela identidade e empatia com um modo de vida, com um tipo de comportamento e modo de vestir. Outro aspecto curioso dos emos diz respeito à sexualidade. Transitam além da heterossexualidade, o homossexualismo e a bissexualidade são comuns entre eles. E pagam o preço da violência homofóbica com esse estilo de vida. São, também, na sua maioria, pessoas pacíficas, contra a violência, o preconceito e as drogas, afirmando que apenas pretendem paz e ser livres para serem eles próprios. Os emos existem em vários países do mundo, e, ao que parece, em Cuba também. Mas em Cuba Leonardo Padura dá outra interpretação a essa seita por meio de seu alter ego, Mario Conde:
“Os ‘emos’ eram netos de um avassalador cansaço histórico e filhos de duas décadas de pobreza generalizada, seres despojados da possibilidade de acreditar, empenhados em se evadir para algum canto que lhes parecesse mais propício, talvez até incessível para todos que estavam fora daquele círculo mental e físico...” (pg 347)
Na terceira parte do livro, as investigações para rastrear o desaparecimento de Judith Torres, que citava Nietzsche em seus diários, amarram as pontas soltas dessas três histórias. E não vai ser eu quem vai estragar o prazer e contar-lhes a história toda.
Minha intenção foi fornecer um mapa de navegação dessa brilhante história a vocês, leitores desse espaço.
Leonado Padura não se define como um herege. Li algumas entrevistas em que ele se considera um heterodoxo. Crítico da emulação socialista cubana, é um descrente. Sua única crença é a liberdade, na luta diária contra todos os poderes, contra todos os medos. Seu poderoso instinto em direção à luta pela liberdade é invencível. Numa citação ao filme “Blade Runner” diz:
“Eu vi coisas que vocês homens nunca acreditariam. Naves de guerra em chamas na constelação de Orion. Vi raios C resplandecentes no escuro do Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”. (pg 194)
A luz dos nossos tempos, a luz do futuro são encontradas nessa citação.
“Hereges” é um livro que deixará uma marca indelével no coração dos leitores. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.