Hamlet
Existem muitas formas de se interpretar Shakespeare. Hamlet, é uma das peças mais famosas, mas existem outras, como Macbeth, Rei Lear e muitas outras. Uma das maravilhas que o teatro nos oferece é que o mesmo texto pode ser encenado de muitas formas e visões diferentes. E Hamlet não é diferente. Até hoje, os diretores teatrais encenam essa e outras tragédias e comédias shakespeareanas, e sempre com uma abordagem e uma visão própria, tornando esse autor imortal. Penso que o teatro de Shakespeare está ligado ao surgimento do sujeito moderno ainda que em seus primórdios, por volta de 1600, ou seja, existe em Hamlet um senso de interioridade. Uma interioridade encurralada:
“Hamlet − ... Como vão ambos, meus camaradões?
Rosencrantz − Como os mais comuns filhos da terra.
Guildenstern − Felizes por não sermos excessivamente felizes. No barrete da fortuna nós somos o penacho.
Hamlet − Nem a sola do sapato.
Rosencrantz − Também, meu senhor!
Hamlet − Quer dizer, vocês vivem na cintura dela: bem ali, no botão dos seus favores.
Guildenstern - Sim, temos algumas intimidades.
Hamlet – Com as partes pendentes da Fortuna! Ah!, a velha rameira! Quais são as novidades?
Rosencrantz – Nenhuma, senhor, senão que o mundo está ficando honesto.
Hamlet − Então se aproxima o fim do mundo. Mas essa notícia não é verdade. Deixem que os interrogue com cuidado: o que é que vocês fizeram com a Fortuna pra ela jogá-las nessa prisão?
Guildenstern – Prisão, meu senhor?
Hamlet − A Dinamarca é uma prisão!
Rosencrantz – Então, o mundo também.
Hamlet – Uma enorme prisão, cheia de células solitárias e masmorras – a Dinamarca é das piores.“ (Ato II Cena 2) (Pg 69, pg 70)
Esse diálogo engloba, além de uma subjetividade encurralada, um sentimento de niilismo. Nesse diálogo, Hamlet rejeita o reino da Dinamarca. E sua rejeição à maioria das "autoridades exercidas pelo Estado, pela igreja ou pela família". Abaixo, esse niilismo fica muito evidente:
“Hamlet − E ser honesto, hoje em dia, é um ser em dez mil.
Polônio − Isso é bem verdade, meu senhor.
Hamlet – Pois mesmo o sol, tão puro, gera vermes num cachorro. Deuses gostam de beijar carniça... O senhor tem uma filha?
Polônio – Tenho sim, senhor.
Hamlet – Não deixe que ela ande no sol. A concepção
É uma benção: mas como sua filha pode conceber...
Amigo, tome cuidado...
Polônio − ... O que está lendo, meu Príncipe?
Hamlet − Palavras, palavras, palavras.
Polônio – Mas qual é a intriga, meu senhor?
Hamlet − Intriga de quem?
Polônio − Me refiro a trama de que lê, meu Príncipe.
Hamlet − Calúnias, meu amigo.” ( pg 67, pg 68)
No livro “Maneirismo: o mundo como labirinto”, de Gustav R. Hocke, foi descrito o homem maneirista: ‘‘que tem medo do espontâneo e que ama a escuridão, orgulha-se pelo fato de descobrir o sensível através de metáforas abstrusas e se esforça por captar o fantástico, graças a uma linguagem sumamente rebuscada’’. Percebe-se então que a imaginação, a fantasia e o lúdico eram aspectos que faziam parte dos pensamentos dos indivíduos da época. A anatomia e a alquimia tiveram grande desenvolvimento, e os trabalhos influenciaram a maneira de pensar das pessoas.
Podemos dizer que os personagens de Shakespeare, em especial Hamlet, possuem esse lado negro a que Hocke se refere. O próprio Freud usou Hamlet como um exemplo de neuroses humanas derivadas do complexo de Édipo em seu trabalho ”A Teoria dos Sonhos”. Para ele, Hamlet representava o lado sombrio em todos nós. Harold Bloom vai mais longe dizendo que a psicanálise de Freud foi escrita por Shakespeare em versos.
Muito se fala sobre a sanidade mental de Hamlet, Ele alterna ataques de energia melancólica e furiosa, mas ele é lúcido o suficiente para entender que o humor, e não a insanidade, é a mais efetiva ocultação de intenções.
Polônio – (à parte) Loucura embora, tem lá seu método.
(Pra Hamlet) O Senhor precisa evitar completamente o ar, meu Príncipe (pg 68)
Afinal, quem de nós não carrega os seus fantasmas? Suas paranoias e suas neuroses? Fantasmas em forma de paranoias, como no diálogo acima, têm seu método Nesse sentido, encaro Hamlet como um personagem moderno. Mas é sempre bom dizer que essa opinião não é minha, ela é compartilhada por muitos teóricos shakespearianos.
Os monólogos de Hamlet revelam um “eu” nuclear, uma região que fabrica uma interioridade baseada em seus segredos sombrios. No entanto, essas sombras revelam-se quando ele mostra, através do teatro dirigido à corte, essa hipocrisia, ou seja, mostra o segredo de seu inimigo (Cláudio). Hamlet apresenta o flagelo político da família corrupta da corte, como um filho fiel enlutado pelo assassinato do pai. Cláudio é muito parecido com Hamlet nesse quesito. Ambos postulam sua própria interioridade sincera.
Outro ponto que chama a atenção é o papel do fantasma, que desempenha um papel fundamental nos destinos dos personagens. O fantasma é importante para o jogo, pois simboliza o destino e catalisa o enredo. O falecido rei Hamlet é forçado a vagar pela terra enquanto é assassinado antes de confessar os seus pecados (para a mais alta corte celestial). O fantasma aparece para Horácio e os guardas. No entanto, Hamlet é o único que é capaz de vê-lo e falar com ele, o que demonstra a proximidade dele com seu pai. Na aparição do fantasma quando sua mãe estava presente (e ela não consegue vê-lo), evidencia-se o vazio criado entre mãe e filho, desde a morte do rei.
Hamlet encontra o fantasma de seu pai morto. O fantasma revela um terrível segredo: seu tio Cláudio assassinara seu pai derramando veneno em seu ouvido, quando a versão oficial dizia que o rei morrera da picada de uma serpente. Mas o fantasma diz a Hamlet:
“Fantasma − Te vejo decidido:
E serias mais insensível do que plantas adiposas
Que apodrecem molemente nas margens do rio Letes
Se ficasses impassível diante disso. Então Hamlet escuta:
Se divulgou que fui picado por uma serpente
Quando dormia em meu jardim;
Com essa versão mentirosa do meu falecimento
Se engana grosseiramente o ouvido de toda a Dinamarca
Mas saiba você, meu nobre jovem:
A serpente mordida tirou a vida de seu pai
Agora usada a nossa coroa.“ (Ato I Cena 5 pg 44)
Quando Hamlet descobre que seu tio assassinou seu pai, ele interpreta seu luto e mostra que ele é autêntico, pois existe uma interioridade que é mostrada a todos nós. Ele agora que mostrar a sua tristeza para todos verem. E, para isso, ele teatraliza a sua dor. Escreve um roteiro e dá para os atores interpretarem, no sentido de colocar no palco a sua obsessão. Hamlet escreve um roteiro que imita a história que o Fantasma lhe contou sobre a morte de seu pai. De acordo com o Fantasma, Cláudio o havia envenenado enquanto dormia em seu jardim. E Hamlet se concentrou no casamento apressado de sua mãe com seu tio.
Não é apenas a coincidência do enredo da peça espelhando o crime dos espectadores assassinos que provoca o alvoroço, mas a habilidade de escrever e atuar. O artifício essencial para encontrar a verdade. A relação entre teatro e realidade é decisiva nessa cena. A peça aponta para um dos problemas éticos da vingança: o vingador acaba se tornando como o criminoso que ele procura punir. Esse jogo dentro de um jogo não só ajuda Hamlet a julgar a culpa de Cláudio (irmão de seu pai), mas também atua como um estímulo para a sua própria vingança: mostra-lhe o assassinato que foi cometido ao seu pai e o assassinato que poderia ser cometido ao seu tio. Uma peça dentro da peça.
Rei − Como se chama o drama?
Hamlet − “A Ratoeira”. Por quê? Ratificação de um fato. Um assassinato acontecido em Viena. Gonzaga é o nome de um duque; a mulher se chama Batista. O senhor verá logo – uma obra-prima de perfídia. Mas que importa isso? Vossa majestade e nós temos almas livres, isso não nos toca; que o cavalo de rédea curta relinche de dor, nós temos a rédea solta. (Ato III cena 2, pg 104)
Toda a extensão do enredo se desenrola primeiro em silêncio, comumente conhecido como “Peste, deixa de fazer essas caretas abomináveis e começa” (pg 105), o que foi um prelúdio para a parte falada da peça que seguiria e esclareceria as ações com diálogos antes não ditos. A cena inteira permitiu que Hamlet assistisse à reação do tio para ver sinais de culpa.
Luciano – Pensamentos negros, drogas prontas, hora dada.
Tempo cúmplice, mãos hábeis – e ninguém vendo nada;
Tu, mistura fétida, destilada de ervas homicidas,
Infectadas por Hécate com tripla maldição, três vezes seguidas,
Faz teu feitiço natural, tua mágica obscena,
Usurparem depressa esta vida ainda plena. (Derrama veneno no ouvido do Rei)
Hamlet − Ele envenena o rei no jardim pra usurpar o Estado. O nome dele é Gonzaga. A história ainda existe e está escrita num italiano impecável. Agora vocês vão ver como o assassino arrebata o amor da mulher de Gonzaga.
Ofélia − O Rei se levanta.
Hamlet − Ué, assustado com tiro de festim! (Ato III cena 2, pg 105)
Cláudio reage à peça, de fato, embora não esteja inteiramente claro qual parte o perturba ou por quê. Hamlet acredita claramente que é bem-sucedido em pegar seu tio e vê sua reação como uma certeza de culpa.
Cláudio (o rei) se levanta e pede:
“Me deem alguma luz! Depressa!”
Todos – Luzes, luzes! Luzes! (pg 106)
Na superfície, parece que Cláudio se mostra perturbado por uma reconstituição de seu próprio crime. A excitação de Hamlet o supera e ele deve se acalmar antes de responder a uma convocação para encontrar sua mãe.
A peça (dentro da peça) realmente provoca uma reação em Cláudio e é suficiente para estimular Hamlet a entrar em ação. No entanto, essa ação rapidamente é frustrada, após o assassinato acidental de Polônio. Mas fiquemos por aqui.
Uma coisa é preciso deixar bem clara, Hamlet não é apenas uma tragédia de vingança de época. O principal protagonista é preciso, a linguagem é primorosa e as relações são sutis e soberbamente desenhadas. E como não poderia deixar de mencionar, a tradução de Millôr Fernandes é excelente. Hamlet merece um lugar de destaque na sua estante.