Estão matando os humoristas
Você já se perguntou por que acha algumas coisas engraçadas e outras não fazem você rir? De onde surge o riso? O que realmente significa um ser humano rir? Esse é um assunto que já foi abordado por psicólogos, filósofos, críticos literários, e todos em suas devidas caixinhas já discutiram esse assunto. Mas Aristóteles lá atrás já dizia que o ser humano é um animal que ri. O riso precisa de um eco, de uma repercussão, necessita de uma parceria entre os interlocutores. O riso está ligado a normas culturais, tradição, história e muitos outros fatores difíceis de entender.
O livro que trago hoje é um humor policial da melhor qualidade: “Estão matando os humoristas”, do escritor, ator e roteirista Beto Silva − é ótimo! Com sua narrativa fluida e inteligente, o autor domina o ofício da escrita, além da arte de ser hilário. Confesso que gargalhei em alguns momentos.
As cenas são bem desenhadas, e os personagens transitam em ambientes sórdidos, onde o sexo e a comédia em pé (stand up comedy) dividem o mesmo palco. O livro é uma combinação de dois gêneros que eu pessoalmente adoro: humor e suspense. Se alguém me disser que lembra Andrea Camillieri (criador do inspetor Montalbano), vou dizer que sim.
Vindo de uma turma que revolucionou a forma de fazer humor no Brasil, Beto Silva ainda leva o selo de qualidade “Casseta e Planeta”, um programa de humor afiadíssimo − que fez escola e marcou uma geração. Após vida longa na TV, a turma migrou para o digital, no canal do YouTube.
Vamos ao livro?
A história começa com a chegada de um garoto chamado Armando na cidade do Rio de Janeiro. Ele vinha do Espírito Santo proveniente de uma cidade do interior chamada João Neiva para ficar na casa do seu tio Ascânio. Havia passado no vestibular para Direito, em uma universidade pública. Quando ele chega à casa do tio após muitas dificuldades, o tio não se encontra em casa. Valdecir (seu primo, filho de Ascânio), que ele nunca conheceu na vida, abre a porta. Quando chega, Armando se apresenta. A casa é um pardieiro. Ele o deixa entrar e se manda para o computador, viciado em pornografia.
À medida que o tempo passa, Valdecir sai da sua zona de conforto e resolve conversar com o primo. Ele mostra o quarto onde ele vai morar. Cheio de tralhas, desconfortável, mas fazer o quê? Era o que tinha. Seu tio Ascânio chega, percebe-se que tanto o pai quanto o filho mantém péssimas relações. O pai é aposentado da Alerj. E o filho é flâneur de sites pornôs.
Armando (o protagonista da história), como já foi dito, passara no vestibular para Direito. E o motivo vem do histórico da família. Vamos deixar o narrador contar melhor essa história:
“A família de Armando estava há muito tempo envolvida com a atividade policial. A tradição começou com o bisavô de Armando, o primeiro de uma série de delegados cujo sobrenome era Penteado. O avô, o delegado Armando Penteado, foi titular da delegacia de João Neiva por bom tempo, uma figura famosa e importante na cidade, considerando um herói, admirado por todos. Um tio-avô também foi delegado numa cidade vizinha. Dois primos, um tio e finalmente o pai de Armando, Praxedes Penteado, também chefiaram delegacias no interior do Espírito Santo. Até a mãe de Armando era policial. Os pais se conheceram numa delegacia em Cariacica, e começaram a namorar durante a batida policial, numa linda cena de amor que terminou com um beijo cinematográfico e a prisão de ladrãozinho que andava importunando a vizinhança. Foi amor a primeira revista” (pg 23)
Armando quando nasceu recebeu o seu nome em homenagem ao avô. Passou sua infância dentro de uma delegacia. Para que vocês tenham uma ideia, no aniversário de um ano ganhou fraldas com a insígnia da polícia. Filho único era marcado de perto. Todos queriam que ele seguisse a carreira de policial. No entanto, a família já desenhara o futuro do garoto. Aos 16 anos já estagiava na delegacia onde os pais trabalhavam. A pressão era imensa, seu futuro já estava desenhado. Mas aconteceu o golpe do destino. Ele passara no vestibular, e a família abençoara a escolha do garoto. Foi para o Rio.
Certa vez, conversando com o seu primo, Armando abriu a guarda e revelou o seu grande sonho: trabalhar contando piadas. Ser comediante. Quando seu tio Ascânio soube dos sonhos do menino, pensou numa proposta. Ele conhecia o dono de uma boate. A proposta feita pelo tio é que ele ficaria com a metade do cachê caso conseguisse uma apresentação para o seu sobrinho. A boate ficava no centro do Rio, num local ermo, uma região abandonada há anos. E seu tio já havia pensado em seu nome artístico: Chico Soares. (uma mistura de Chico Anysio com Jô Soares)
Sua primeira apresentação aconteceu sem que Armando tivesse nada para oferecer em termos de piadas, teria que ser meio no improviso. Enquanto esperava a sua hora para entrar em cena, assistia às meninas que faziam show de pole-dancing, em seus biquínis sumários. Ao ver a aflição do seu sobrinho para entrar em cena, comentou:
“O truque é o seguinte: eu gargalho aqui na plateia e o Neneca (o dono da boate Shalimar) nunca vai saber quem foi. Esse negócio de rir é contagiante, é só um sujeito rir que os que estão em volta começam a rir também” (pg 30)
A hora de entrar em cena estava chegando. Armando (Chico Soares) encontrou Jéssica, uma travesti que mostrara o camarim. Via seu sonho deslizando no ralo, não tinha material algum. A única coisa que fazia com que a ansiedade e a sensação de fracasso dessem um refresco era ver o show das shalimetes, as dançarinas. O destino parecia selado. Kiko Peixoto um comediante tarimbado, abriria o show de Chico Soares. Foi muito aplaudido. Kiko deu uma força para Armando dizendo que tudo daria certo.
No momento em que entrou em cena, ele fora apresentado como uma estrela internacional e lá foi o nosso rapaz. Começou pelo que ele tinha de pior que era imitação de mineiro de Uberaba, com sotaque “mineirin”, e por aí foi. O público começava a dar sinais de impaciência. Se o clima já estava tenso, tudo piora, quando de súbito, Dalva, uma das dançarinas mais lindas da boate, aparece gritando que Kiko (o comediante que antecedera Armando) havia sido assassinado com dois tiros. A partir daí, humor e suspense se misturam numa trama interessante e envolvente. Sem abrir mão do riso como plataforma.
Mas a coisa não para por aí, Armando e Dalva, a dançarina, desenvolvem uma relação afetiva. Kiko era o seu amante. E aquela mulher espetacular tinha um fraco por comediantes. Armando a confortou no meio dessa tragédia toda e acabou interessado pela vida do comediante. A morte de Kiko não havia sido bem digerida por Armando. Mas até aí, vida que segue. Um policial começou a aparecer na boate Shalimar. Havia algo no ar... Algo que cheirava a assassinato. Mas e a prova? Apenas desconfiança. Até que...outra morte acontece e... tudo assim, nesse clima de boate, longe de narrativas politicamente corretas, e afirmo que o assassino não está entre “petralhas”, nem “ bolsominions”, e nem foi o cachorro que estava solto em Teresópolis, em um sítio de um suspeito, porque nessa trama tem de tudo, e a combinação de referências inusitadas nos levam ao riso. Fato.
Como eu disse lá em cima. A vida está cheia de situações engraçadas que podem ser utilizadas por um comediante, mas, se você puder fazer isso com inteligência, é um bônus, e “Estão matando os humoristas” de Beto Silva vale um lugar de destaque na sua estante.