As Aventuras do Bom soldado Svejk
“As aventuras do bom soldado Svejk”, do escritor Jaroslav Hasek, foi um dos livros mais curiosos que li nos últimos tempos. É uma sátira pungente cujo objetivo são as instituições e a autoridade. E o autor não demonstra o menor respeito para com elas. Não foi à toa que o romance foi banido e censurado na Tchecoslováquia. Mas a corrupção e o abuso de poder não se limitam de modo algum à região geográfica que Jaroslav Hasek descreveu (Europa Central) –- é um fenômeno profundamente enraizado na natureza humana. A literatura antiautoritária, de uma forma geral, sempre provoca esse tipo de reação por ilustrar os descalabros e os abusos do poder estabelecido. O humor de Jaroslav Hasek é atemporal, rascante e nervoso. A picada crítica é dirigida não apenas às instituições de seu país, mas à corrupção e ao abuso de poder, ao egoísmo, à estupidez e, o mais trágico de tudo, à falta de alternativa para uma mudança.
A guerra é simplesmente uma extensão do que existe num estado moderno complexo, talvez a guerra seja simplesmente mais uma manifestação desse jeito de pensar. A condição da guerra simplesmente torna os absurdos mais cruéis.
Existe uma semelhança com o escritor Joseph Kafka, nascido na Tchecoslováquia, autor de “O processo”, no tocante à crítica que ambos fazem à burocracia. No caso de Jaroslav Hasek, a crítica abrange todas as instituições e não se restringe à Tchecoslováquia. Enquanto Kafka faz uma leitura de dentro da burocracia para fora, Hazek faz uma crítica de fora para dentro.
Outro ponto que me chamou a atenção neste livro de Jaroslav Hasek foi que muitos livros antiguerras na virada do século XX eram poesias, canções e dramas. “Adeus às armas”, de Ernest Hemingway, “Nada de Novo no Front”, de Erich Maria Remarque, “Viagem ao fim da Noite”, de Louis Ferdinand Céline, são alguns exemplos, mas todos explorando dramas, o lado escuro da alma humana em um período obscuro da história humana na Primeira Guerra Mundial.
O soldado Svejk é um personagem picaresco. Ele é obediente, mas esperto, um ser que não chega a encantar. Sua inocência de um homem comum tem um efeito catalisador. Vamos às aventuras do bom soldado Svejk?
A história do romance é, de muitas formas, um trabalho muito tradicional. Escrito como um romance picaresco, conta as aventuras de um homem ardiloso de baixa renda que usa sua sagacidade nativa para sobreviver a uma série de aventuras. O enredo é comumente estruturado em uma sequência linear de incidentes que confronta o herói (e seu companheiro de ocasião) com vários elementos de uma sociedade complexa e corrupta. Veremos que Svejk é preso e libertado, preso, libertado, posto em um asilo para doentes mentais e libertado, depois preso mais uma vez. Ele cumpre as ordens do seu jeito, por isso ele fica sempre em dificuldades quando tem que lidar com a burocracia. No entanto, ele subverte a burocracia ao aceitar sua autoridade, por vezes com entusiasmo, e continua ser ele mesmo dentro dos limites impostos. Ao mesmo tempo que ele é servo, submisso, é também um agente subversivo.
“O médico militar sênior aproximou muito de Svejk.
- Eu gostaria de saber em que você está pensando agora, idiota.
- Humildemente, senhor eu nunca penso.
- Raios e trovões! – vociferou um dos membros da junta, fazendo o sabre tilintar. – Então você não pensa! E por que não pensa seu elefante siamês?
- Humildemente, eu não penso porque os soldados foram proibidos de pensar. Quando estava fazendo o serviço militar, há alguns anos, no 91° Regimento, nosso capitão sempre dizia: “Um soldado não deve pensar sozinho. Seu superior pensa por ele. Quando um soldado começa a pensar, deixa de ser um soldado e vira um civil vulgar.
Pensar não leva a...”
- Cale a boca – interrompeu-o furiosamente o chefe da junta. – Já tivemos notícias a seu respeito. O malandro quer nos fazer crer que é um idiota de verdade. Não, você não é nenhum idiota de verdade. Não, você não é nenhum idiota, Svejk. Você é esperto, astuto é um pilantra, um impostor, um sem vergonha, entendeu?
- Entendi, humildemente.
- Eu já lhe disse para calar a boca, não me ouviu?
- Humildemente, ouvi sim que devo calar a boca.
- Deus do céu, cale a boca então, pois eu lhe ordenei. Você sabe muito bem que não é permitido falar pelos cotovelos.
- Humildemente, sei que não é permitido falar pelos cotovelos.
Os médicos militares trocaram olhares e gritaram para o sargento mor:
- Leve esse homem à secretaria! – disse o chefe da junta médica, apontando Svejk. – Esperem ali o nosso informe. Na prisão militar esta conversa fiada vai passar. O sujeito está saudável como um peixe, apenas finge e ainda fala pelos cotovelos e zomba de seus superiores. Acha que estamos aqui para distraí-lo e que a guerra é uma brincadeira. No cárcere militar logo lhe ensinarão, Svejk, que a guerra não é uma festa.” (pg82,pg 83)
Existem muitas referências à cultura tcheca. É normal que os leitores brasileiros não tenham muita intimidade com essa cultura. Dessa forma, uma boa quantidade de piadas e referências passarão despercebidas. Mas a tradução excelente de Luís Carlos Cabra nos ajuda muito a entender determinadas passagens.
O romance picaresco é um gênero bem adaptado à sátira, porque permite ao autor, com um mínimo de esforço, introduzir uma grande variedade de tipos sociais em situações diferentes e muitas vezes incongruentemente divertidas para expor sua hipocrisia, vaidade e estupidez. E isso o livro nos traz. A forma não exige demandas complexas de tramas intrincadas (como, por exemplo, em uma história de detetive) ou, em muitos casos, caracterização detalhada (a maioria dos personagens são caricaturas de tipos sociais). E a jornada pode, como no caso de Jaroslav Hasek, ser temporariamente interrompida e retomada sem perda de energia narrativa ou lógica.
Frequentemente, o personagem principal permanece em movimento de modo que a história consiste na série de episódios que ele experimenta na estrada, nas várias aventuras a que ele deve sobreviver ou nos obstáculos que ele deve superar para continuar. E a história termina quando o herói termina sua jornada. No caso, termina quando morre o autor Jaroslav Hasek, antes de terminar o romance depois da Primeira Guerra Mundial. Portanto, é um romance incompleto, mas que mesmo assim vale muito a pena ler.
Josef Svejk era um comerciante de cães de Praga, parte do Império Austro- Húngaro. Ele ganhava a vida vendendo cães de pedigree falsificado, e ele também gosta de dizer que foi demitido do exército devido à idiotice. Note que essa é a informação que ele reserva para seus encontros com as autoridades. De outro modo, o seu horizonte mental era aparentemente limitado, sua substância moral parecia duvidosa e se distinguia por produzir anedotas inesgotáveis, algumas delas bastante desagradáveis. As histórias eram muitas vezes a sua maneira de falar e de se livrar de situações difíceis. Ele era muito bom em falar, sempre tinha a resposta pronta. Apesar de ele não parecer inteligente, ele sem dúvida tinha uma boa memória. E também tinha um dom único para sair de situações difíceis.
No exército tcheco, apesar de ter sido classificado como um retardado mental, o soldado Svejk torna-se ordenança do tenente Lukas. O tenente não suporta Svejk porque ele sempre interpreta literalmente aquilo que lhe mandam fazer. Quando lhe dizem para esperar em uma estação de trem, perde o trem da tropa e tenta achar seu regimento andando na direção errada. Ele é preso como desertor, mas enviado de volta para o seu regimento.
Jaroslav Hasek confronta-nos repetidamente com a voz didática do narrador, às vezes em passagens ocasionais e, por vezes, em tamanho considerável.
Por exemplo, a abertura do capítulo 11, na parte 1, um discurso de duas páginas contra a religião: Os preparativos para a matança de gente simples sempre foram levados a cabo em nome de Deus ou de algum hipotético ser supremo que a humanidade tivesse engendrado em sua imaginação.
Antes de cortar o pescoço de um prisioneiro de guerra, os antigos fenícios celebravam um solene rito sagrado da mesma maneira que, de alguns milênios mais tarde, fariam as novas gerações antes de ir à guerra. E matar seus inimigos a ferro e fogo...
...Antes de queimar suas vítimas, a Santa Inquisição celebrava a mais solene das cerimônias religiosas, uma grande missa cantada.
À execução de um delinquente comparece sempre um sacerdote que o importuna com sua presença. Na Prússia, é um pastor quem acompanha o desgraçado até o machado, na Áustria, um sacerdote católico o conduz à forca; na França, à guilhotina; na Espanha ao garrote, na América, um pastor o leva a uma cadeira elétrica e na Rússia é um pope barbudo quem acompanha os revolucionários, e assim por diante.
Em todos os países, os sacerdotes usam crucifixo como se quisessem dizer: “ Cortarão sua cabeça, será enforcado, será estrangulado, descarregarão em seu corpo quinze mil volts, mas nunca irá sofrer tanto, como este aqui”.
O grande matadouro que foi a Guerra Mundial também não podia prescindir da benção eclesiástica. Os capelães de todos os exércitos rezavam e celebravam missas de campanha pela vitória do país que lhes fornecia o pão.
Nada mudara desde a época em que o bandoleiro Vojtech (Santo Adalberto), que mais tarde foi canonizado, contribuiria para o extermínio dos eslavos bálticos com a espada em uma mão e a cruz na outra...” (pg 129, 130).
Assim, a comédia das aventuras de Svejk é jogada contra um pano de fundo de comentário narrativo afiado e muitas vezes amargo. Uma presença que está sempre nos lembrando que, por mais que possamos rir em um determinado incidente, as ações surgem de uma experiência real, ou seja, a gênese desse humor moderno tem como princípio uma “indignação selvagem” contra a crueldade absurda que os seres humanos infligem uns aos outros, esquecendo sua humanidade comum, e se iludem com sonhos de grandeza e orgulho durante uma guerra.
O estilo de Jaroslav Hasek cria uma tensão curiosa entre a voz áspera do narrador e a presença divertida e irônica de Svejk, como se estivéssemos presenciando uma comédia muitas vezes implausível e engraçada diante de um pano de fundo atroz e real. Essa é uma tensão cômica que não fortalece uma visão alternativa saudável da vida, mas como algo absurdo, muito mais escuro do que a sátira cômica convencional pode sugerir. Aliás, se pudermos tirar uma conclusão sobre essa história ela está aqui:
“Mais tarde, Svejk descreveu a vida no manicômio com entusiasmo inusitado:
- Na verdade, não entendo por que os loucos protestam por estarem trancafiados. No manicômio as pessoas podem arrastar pelo chão, ficar nuas, uivar como chacais, se enfurecer e até morder. Se se comportassem assim em outro lugar, todo mundo ficaria surpreso, mas no manicômio é a coisa mais natural do mundo. Nem os socialistas sonharam com tanta liberdade como a que se tem ali. Qualquer um pode se passar por Deus ou pela Virgem ou pelo papa ou pelo rei da Inglaterra ou pelo senhor imperador ou por São Venceslau, embora este último, o que dizia que era São Venceslau, vivesse amarrado, nu e isolado do resto...
...Havia jogadores de Xadrez, políticos, pescadores, escoteiros, colecionadores de selos e fotógrafos amadores. Um sujeito estava ali por causa de uma espécie de umas canecas velhas que chamavam de cinzeiros. Outro estava com camisa de força para não poder calcular quando o mundo não acabaria. Também encontrei alguns professores. Um deles vivia correndo atrás de mim querendo provar que o berço dos ciganos eram as montanhas Krkose, no norte da Boêmia, e um outro vivia insistindo que dentro do globo terrestre havia um outro, maior do que o extremo.
Todo mundo tinha liberdade para dizer o que lhe passava pela cabeça, como se estivesse no Parlamento. Às vezes contavam contos de fada e saíam na porrada quando acontecia uma desgraça com alguma princesa. O mais feroz de todos era um senhor que dizia ser o décimo sexto tomo da enciclopédia Otto da língua Tcheca:* pedia a todos que o abrissem e procurassem a senha ‘costureira de papelão’; se não, estaria perdido. Só se tranquilizava quando o enfiavam na camisa de força. Então, ficava feliz, achando que estava em uma impressora e pedia para que lhe fizessem uma lombada bem moderna (pg39, pg40)”
A loucura como a única saída para os duros embates com a burocracia e as instituições. A loucura como uma única forma de fugir da opressão, da vida cruel. É importante notar que Svejk passa quase todo o romance executando ordens. Ele não tem nenhuma liberdade de tomar decisões sobre quaisquer questões mais importantes de sua vida. Ele não tem vida própria: ele tem que participar da vida de outras pessoas. Assim, toda a sua vida será determinada, por seus superiores, pelo sistema.
Isso nos impede de sentimentalizar Svejk, pois somos constantemente lembrados de que as situações com as quais ele tem de lidar, as crueldades e abusos de rotina que ele tem que enfrentar, não são apenas ficções exageradas, mas sim caricaturas da vida real vividas ao extremo pelo narrador.
Para finalizar, gostaria de enfatizar um ponto muito explorado por Hasek. Ele enfatiza as loucuras satíricas da burocracia associando-as às exigências fisiológicas que se manifestam na comida e na bebida, como o vômito e as cagadas. O autor desmascara a vaidade humana, os delírios de grandeza, comuns a todos nós.
O ponto satírico é suficientemente claro. Quaisquer que sejam as realidades da vida, elas simplesmente não podem ser contidas ou definidas por formulações retoricamente piedosas transmitidas de cima para baixo. Uma das tentativas mais divertidamente ridículas da hierarquia militar para impor ordem é a ênfase em enemas, para estimular a evacuação.
O romance deixa claro que a necessidade de evacuar é algo que une verdadeiramente os seres humanos, ligando o Imperador a um súdito mais humilde. Há muita cocô em cada batalha. O excremento de soldados de todas as nacionalidades em conflitos estavam lado a lado ou empilhados, não brigavam entre si. Tal ênfase não tem como objetivo extrair o denominador comum, mas sim insistir que a vida é essencialmente compartilhada e que transcende a nações, religiões e qualquer outra tentativa dogmática de impor diferenças artificiais em pessoas com classificações arbitrárias. (A essência do pensamento burocrático.) A merda é o que une a verdadeira história, e não os mitos.
Isso pode muito bem ser a razão pela qual neste livro os momentos que se inscrevem como as interações mais relaxadas e mais verdadeiramente humanas tendem a ocorrer quando as pessoas estão desfrutando os prazeres físicos, como a bebida mais básica, a preparação dos alimentos, a refeição em conjunto ou o compartilhamento de um cigarro. Nesses momentos, por exemplo, um tcheco e um húngaro podem esquecer suas diferenças étnicas, políticas e linguísticas que os separam e compartilhar seus recursos para prolongar o momento e entabular uma conversa que parece impossível em determinada situação.
Mesmo a camaradagem da cela surge do sentido inescapável de intimidade física do outro, um reconhecimento inevitável de uma humanidade compartilhada que, nesse lugar, permeada pelas vistas e os cheiros da vida física, não pode ser escondida por trás dos rótulos habituais ou uniformes usados para distingui-los uns dos outros, e tornar uns mais importantes do que outros.
A comida era ruim; o processo digestivo, difícil para todos, e a maioria sofria de flatulência, À noite, eles respondiam uns aos outros com estes sinais, acompanhados de várias frases espirituosas. Traduzindo: a comida ruim gera peidos e depois piadas compartilhadas. Tudo isso dominado por um sentimento de desimportância.
A prisão pode feder, mas o odor associado à sensação de uma grande igualdade é a humanidade disponível em que não há fingimentos, ninguém é mais importante que ninguém. Uma situação típica dos reclusos presos que compartilham melodias tristes de sua miséria comum, mas também todos os tipos de canções energéticas que celebram o seu momento de companheirismo.
“As aventuras do bom soldado Svejk” não é uma sátira tradicional. Não há uma moral de toda essa história a não ser a loucura. Svejk não traz nenhuma filosofia, não há um sentido. Nada em sua experiência vale uma reflexão. Neste romance picaresco, o nosso herói não oferece nada. Ele está lidando como ele sempre fez, momento a momento, e sobrevive com seu senso de si mesmo, ou seja, de absurdo. Não há muito para construir. As pessoas comuns aqui compartilham comida, bebida, dinheiro, tabaco e companhia umas das outras livremente, muitas vezes em circunstâncias difíceis. O humor aqui não nos oferece uma visão alternativa de mundo. A vida continua a ser tão cruel e absurda após a piada ou a história cheia de tons mais sombrios que o narrador enfatiza para nós. Este é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.