A Metamorfose
Antes de começar esta resenha, devo dizer que Franz Kafka é um dos autores mais emblemáticos de minha vida. Gosto muito desse autor. “A Metamorfose”, para mim, tem um apelo especial. Foi graças a esse livro que eu escrevi a letra da música “Uma barata chamada Kafka”, do grupo Inimigos do Rei, que fez um enorme sucesso no final da década de 1980. O refrão era “Vem Kafka comigo”. Eu li “A Metamorfose” na década de 1970 e essa leitura me chocou de tal forma que me causou um enorme desconforto existencial. No entanto, com o passar dos anos, essa obra teve um efeito inverso. Comecei a achá-la engraçada. Aliás, foi a mesma reação que o pai de Kafka teve ao ler o livro do filho. Achou exatamente o mesmo, ou seja, engraçado.
Franz Kafka, para quem acompanha este site, é um autor recorrente. Tenho uma enorme admiração por ele. Se há algo que pode defini-lo (na minha modesta opinião), é o fato de ser um dos autores possuidores de uma grande imaginação criativa. Todos os seus livros revelam essa faceta.
Franz Kafka nasceu em Praga, foi o primeiro de seis filhos em uma família de judeus de classe média. Formou-se em direito e, aos 24 anos, conseguiu um emprego em uma seguradora, embora não tivesse por esse trabalho nenhum tipo de satisfação. Mas era o que pagava as suas contas. Suas cartas e diários revelam uma total inadequação social. Segundo alguns biógrafos, Kafka teria queimado pelo menos 90% de tudo que havia escrito. Mas “A Metamorfose” foi o único livro que ele deixou publicar. Aos 34 anos, foi diagnosticado com tuberculose, o que o levou à morte sete anos depois. Antes de morrer, havia escrito um bilhete ao seu grande amigo Max Brod pedindo que destruísse suas obras restantes. Mas Brod (“GRAÇAS A DEUS”!) ignorou o pedido e publicou “O Processo”, “O Castelo” e “América”, todos já resenhados aqui. Franz Kafka foi um daqueles escritores que não conseguiram ver o tamanho adquirido. Tranquilamente é considerado um dos escritores mais brilhantes da literatura mundial. O adjetivo “kafkiano” passou a ter o significado de frustrações da existência moderna.
As relações familiares de Kafka eram muito turbulentas. Seu pai, Herman Kafka, representava tudo o que era de mais opressivo para o escritor. Em uma carta de 47 páginas endereçada ao pai, que nunca foi enviada, detalhou como seu pai havia estabelecido um padrão e um exemplo inatingível para o filho, proibindo-o de viver livremente. Sua mãe sempre apoiou o pai, o que corroeu seu relacionamento com o filho. Esse lado repressivo, esse conflito contra uma força repressiva sempre foi um dos temas de sua obra.
Gilles Deleuze e Félix Guattari argumentam que a obra de Kafka é mais divertida (o que eu concordo inteiramente) através dos mundos absurdos e cruéis que ele cria. Milan Kundera acredita que Kafka cria mundos inversos de Dostoievski. Enquanto Dostoievski descreve criminosos arrependidos, os personagens de Nelson Rodrigues, por exemplo (alguns deles), são criminosos imorais. No entanto, Kafka é o inverso, ou seja, os personagens são punidos sem terem cometido crime algum. São punições oriundas de uma família patriarcal, ou por um Estado totalitário.
Vamos à história?
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante de meus olhos.
O que aconteceu comigo? Pensou.” (pág. 7)
Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda numa manhã e descobre que se transformou em uma barata gigante. Ele percebe que perdeu o trem em direção ao seu trabalho. Ele encontra-se atônito, pois não pode perder o dia de trabalho. Ele tenta se familiarizar com seu novo corpo enquanto se preocupa com o seu estressante trabalho de vendedor. Seu pai e sua irmã Grete percebem que algo está errado e batem à porta, mas ele descobre que não consegue reproduzir a fala humana e também não consegue abrir a sua porta. O gerente (seu chefe imediato) aparece em sua casa e o repreende por seu atraso e comportamento estranho, sugerindo até que seu emprego está em perigo. Quando Gregor tenta se defender, ninguém consegue entendê-lo:
“Gregor compreendeu que o gerente não podia de modo alguma embora nesse estado de espírito; caso contrário, seu emprego na firma ficaria extremamente ameaçado. Os pais não entendiam nada disso muito bem; no curso de longos anos formaram a convicção de que Gregor estava garantido pelo resto da vida nessa firma e além disso tinham tanta coisa para fazer agora, com as preocupações do momento, que qualquer previsão lhe escapava. Mas Gregor tinha essa previsão. O gerente precisava ser retido, tranquilizado, persuadido e finalmente conquistado; dependia disso o futuro de Gregor e de sua família! Se ao menos a irmã estivesse aqui! Ela era pequena; já tinha chorado quando Gregor ainda estava deitado calmamente de costas. E sem dúvida o gerente, esse amigo das mulheres, teria se deixado levar por ela; ela teria se deixado levar por ela; ela teria fechado a porta do apartamento e desfeito o seu susto na antessala de palavras. Mas infelizmente a irmã não estava aqui, era o próprio Gregor quem precisava agir. E sem pensar que ainda não conhecia suas atuais faculdades para se mover, sem cogitar também que seu discurso possivelmente – na verdade, provavelmente – não tinha sido entendido outra vez, ele largou a folha da porta e se enfiou pela abertura; queria caminhar até o gerente, que já segurava ridiculamente com as duas mãos no corrimão do vestíbulo; mas logo caiu – buscando apoio e com pequeno grito – sobre suas inúmeras perninhas.” (pág. 27; pág. 28)
Finalmente, Gregor consegue destrancar a porta e sair. Ao vê-lo, sua mãe desmaia; seu pai cerra o maxilar e o punho – e então chora. Gregor tenta dizer ao supervisor o quão dedicado ele é, mas seu chefe sai da casa apavorado. O pai de Gregor, então, furioso, leva o filho de volta para o quarto, ferindo Gregor no processo.
“Sua ideia fixa era simplesmente que Gregor voltasse o mais rápido possível para o quarto. Jamais teria permitido os preparativos minuciosos de que Gregor necessitava para levantar-se e, talvez desse modo, passar pela porta. Ao invés disso, impelia agora Gregor com um ruído excepcional, como se não existisse nenhum obstáculo; a voz atrás dele já não soava como a de um pai apenas; realmente já não era brincadeira e Gregor forçou – acontecesse o que quisesse – a entrada pela porta. Um lado do seu corpo se ergueu, permaneceu torto na abertura da porta, um dos seus flancos se esfolou inteiro, na porta branca ficaram manchas feias, ele logo entalou e não poderia mais mover-se sozinho – as perninhas de um lado pendiam trêmulas no ar, as do outro comprimiam-se doloridas no chão – quando o pai desferiu, por trás, um golpe agora de fato possante e libertador e ele voou, sangrando violentamente. Bem para dentro do quarto. A porta foi fechada ainda com a bengala, depois houve por fim o silêncio.” (pág. 31)
À medida que o tempo vai passando, Gregor permanece escondido em seu quarto em comum acordo com a família. Grete, sua irmã, torna-se sua cuidadora oficial, alimentando-o e limpando o quarto quando seus pais e a empregada não estão por perto.
Gregor, enquanto isso, reflete sobre a família e como se dedicou ao trabalho na tentativa de salvar a família após o lamentável colapso dos negócios do seu pai, há cerca de cinco anos:
“A preocupação de Gregor na época tinha sido apenas tudo para a família esquecer o mais rápido possível a desgraça comercial, que havia levados todos a um estado de completa desesperança. E assim começava a trabalhar com um fogo muito especial. E, quase da noite para o dia, passara de pequeno caixeiro viajante, que naturalmente tinha possibilidades bem diversas de ganhar dinheiro e cujos êxitos no trabalho se transformaram na forma de provisões, em dinheiro sonante que podia ser posto diante da família espantada e feliz. Tinham sido bons tempos e nunca se repetiram, pelo menos com esse brilho, embora Gregor mais tarde ganhasse tanto dinheiro eu era capaz de assumir – e de fato assumiu – as despesas de toda a família. Tanto a família como Gregor acostumaram-se a isso: aceitava com gratidão o dinheiro, ele o entregava com prazer, mas disso não resultou mais nenhum calor especial. Só a irmã ainda havia permanecido próxima a ele e o plano secreto dele era mandá-la no próximo ano ao conservatório, sem pensar nos altos custos que isso representava, os quais seriam ressarcidos de outro modo; pois ela diferentemente de Gregor gostava muito de música e sabia tocar violino de forma comovente. Várias vezes durante curtas estadas de Gregor na cidade, mencionou-se o conservatório nas conversas com a irmã, mas sempre como um belo sonho, em cuja realidade não se podia pensar, e os pais não gostavam de escutar nem mesmo essas menções inocentes; Gregor, porém, pensava nisso de maneira muito definida e tinha a intenção de anunciá-lo solenemente na noite de Natal. (pág. 41; pág. 42)
O pai expõe a situação financeira da família, mostrando que as coisas não estão bem. Gregor pensa em seus planos de economizar e pagar a educação da sua irmã, e se preocupa, já que seus pais idosos não estão em condições de trabalhar. Grete (sua irmã) decide tirar os móveis do quarto de Gregor para lhe dar mais liberdade de movimento. A mãe a ajuda a fazer a mudança. Ela não o vê desde a primeira manhã. Grete repreende Gregor e acompanha sua mãe para fora do quarto. Sua mãe diz:
“- Não é como se nós mostrássemos, retirando todos os móveis, que renunciássemos a esperança de melhora e o abandonamos a própria sorte, sem nenhuma consideração? Creio que o melhor seria tentarmos conservar o quarto exatamente no mesmo estado em que estava antes, a fim de que Gregor, ao voltar outra vez para nós, encontre tudo como era e possa desse modo esquecer facilmente o que aconteceu no meio tempo.
Ao ouvir essas palavras da mãe, Gregor reconheceu que a falta de qualquer comunicação imediata, ligada a vida uniforme da família, devia ter confundido o seu juízo no decorrer desses dois meses, pois não podia explicar de outro modo que tivesse podido explicar de outro modo que tivesse que exigir a sério que seu quarto fosse esvaziado. Tinha realmente vontade de mandar que seu quarto – confortavelmente instalado com móveis herdados – se transformasse numa toca em que pudesse então certamente se arrastar imperturbado em todas as direções, ao preço, contudo do esquecimento simultâneo rápido e total do seu passado humano?” (pág. 50)
No entanto, com o passar do tempo, Gregor foi se sentindo mais adaptado ao seu novo corpo. Grete e a mãe resolvem remover de vez todos os móveis para dar mais espaço a ele. As duas retiram os móveis, mas Gregor considera suas ações profundamente angustiantes. Ele começa a escalar as paredes e o teto para se divertir. A mãe de Gregor o vê pendurado na parede e desmaia. O pai (que já estava trabalhando) pergunta:
“O que aconteceu? Foram suas primeiras palavras; a aparência de Grete certamente havia denunciado tudo.
Grete respondeu com voz abafada, obviamente comprimia o rosto no peito do pai.
- A mãe desmaiou, mas agora já está melhor. Gregor escapou.
- Eu já esperava, disse o pai. – Eu sempre disse isso a vocês, mas vocês mulheres não quiseram me ouvir.” (pág. 55)
Seu pai retorna do novo emprego e, entendendo mal a situação, acredita que Gregor tentou atacar a mãe. O pai joga maçãs em Gregor, e uma delas afunda em suas costas, ficando [alojada ali. Gregor volta para o quarto, mas se encontra muito ferido. Esse ferimento o fez sofrer mais de um mês, a maçã ficou alojada na carne como uma recordação visível, já que ninguém ousou removê-la.
A família de Gregor começa a deixar a porta aberta do quarto por algumas horas todas as noites para que eles possam observá-lo. Ele vê a sua família se desgastando com a pobreza.
“ Quem nessa família sobrecarregada e exausta tinha tempo para se ocupar de Gregor mais que o absolutamente necessário? A economia doméstica tornou-se cada vez mais restrita; a empregada foi afinal despedida; uma faxineira imensa ossuda, de cabelo branco esvoaçando em volta da cabeça, vinha de manhã e à noitinha para fazer o trabalho mais pesado; a mãe cuidava do resto, além da costura.” (pág. 64)
Até a Grete, sua irmã, via a sujeira dele, mas decidiu deixá-la. Ela não limpa mais o seu quarto nem demonstra consideração por Gregor. Ela joga restos de comida no quarto do irmão que agora está desarrumado e caótico, assim como a aparência de Gregor.
A família acaba aceitando hóspedes, e isso tem como consequência a chegada de três hóspedes, o que faz com que os móveis extras sejam levados para o quarto de Gregor, deixando-o angustiado. Os inquilinos jantavam na sala de estar comum. A porta do quarto dele ficava fechada por várias noites, fazendo com que renunciasse à porta do quarto, que ficava sempre fechada.
Negligenciado pela família, Gregor deixou de comer, ele raramente come. Grete toca violino para os inquilinos, e Gregor é atraído para fora de seu “quarto imundo”. Quando é visto, Gregor está coberto de poeira, detritos e restos de comida, aumentando a feiura de sua aparência. Os hóspedes decidem ir embora:
“ - Declaro por esse meio – disse ele, erguendo a mão e procurando também a mãe e a irmã com o olhar – que eu, levando em conta as condições repulsivas reinantes nesta casa e nesta família – aqui ele cuspiu no chão, rápido e decidido -, rescindo instantaneamente a locação do meu quarto. Naturalmente não vou pagar o mínimo que seja nem pelos dias que aqui passei; pelo contrário, vou ainda refletir se não movo contra o senhor alguma ação com reivindicações que serão – acredite-me – muito fáceis de fundamentar.” (pág. 76)
Grete, possuída pelo desespero, se refere ao irmão como “isso” e insiste que eles deveriam se livrar dele, pois acredita que ele não consegue entender o que estão dizendo. Devastado, Gregor retorna ao seu quarto. Na manhã seguinte, a faxineira encontra o corpo de Gregor morto de fome:
“- Precisamos nos livrar disso, disse então a irmã exclusivamente ao pai, pois a mãe não ouvia nada com a tosse. – Isso ainda vai nos matar a ambos, eu vejo esse momento chegando. Quando já se tem de trabalhar tão pesado, como todos nós, não é possível suportar em casa mais esse eterno tormento. Eu não aguento mais.” (pág. 77)
Ao saber da morte de Gregor, a faxineira é demitida, o que a deixa feliz. Reina uma paz na família com a ausência de Gregor. Após a morte do filho, o Sr. Samsa (pai de Gregor) sai do apartamento juntamente com sua mulher e sua filha, coisa que não faziam há meses. Conversavam sobre as perspectivas futuras. E começam a perceber que Grete já estava bem crescida para ter um marido adequado.
Eu li em um comentário feito na página do Instagram do Bons Livros que o inseto a que Kafka se referia não era uma barata. O que não é inteiramente incorreto. Tem um fundamento. No entanto, há uma certa unanimidade em que a barata seria esse inseto. E eu comprei essa interpretação.
Indico “A Metamorfose”, de Kafka, como um “SUPER LIVRO” que merece um lugar de “HONRA” na sua estante.