A filha das flores
Com certo atraso, acabei de ler “A Filha das Flores”, de Vanessa da Mata. Vanessa é uma cantora do primeiro time da música popular brasileira, e ao que tudo indica, em seu romance de estreia, parece que a escritora tem tudo para figurar entre as grandes escritoras da atualidade. Falarei disso mais adiante.
Quando o livro foi lançado, em 2013, minha vida pessoal estava um horror. Meu pai estava muito doente, vindo a falecer no mês de setembro do mesmo ano. Vivi certa paralisia. Como eu sempre escrevo resenhas, o blog não ficava sem um livro. Tinha várias resenhas prontas, o que me possibilitou atualizar sempre o blog. Mas nesse período não li muita coisa. E “A Filha das Flores” foi um desses livros.
Conheci Vanessa da Mata nas livrarias em que trabalhei. Sempre foi uma leitora voraz. E o melhor de tudo: um gosto pela literatura africana e portuguesa. Se somar o número de vezes que conversamos, não passaria de quinze minutos. Menciono isso apenas para relatar que “A Filha das Flores”, se você leitor tiver essa oportunidade única de ler, é um livro onde podemos ouvir a voz dessa grande contadora de história em cada linha, em cada parágrafo, em cada página. Eu ouvia a voz de Vanessa da Mata narrando o livro. Digo que foi a primeira vez que tive essa sensação em minha vida. E olha que eu tenho estrada...
Não saberia dizer de onde vem esse dom de nos fazer ouvir sua voz narrando. Lanço algumas hipóteses, uma delas é de sua alma interiorana. Todas as pessoas que já moraram no interior sabem do que estou falando. Quem mora ou já morou no interior (como eu), possui o dom da interiorização. E foi através dessa interiorização que tive o privilégio de ouvir a voz da narradora.
O livro não é biográfico. Percebe-se isso. É de uma contadora de história e de mão cheia. E não foi à toa que “A Filha das Flores” já foi indicado por professores(as) em vários estabelecimentos de ensino no Brasil. E é exatamente pegando o gancho acima que posso dizer, sem nenhum medo de errar: Vanessa da Mata vai surpreender você. Os cenários que sua imaginação cria e os personagens inseridos nessa história nos dão um colorido linguístico que se revela na prosa de Vanessa. É um livro de amplo espectro,atinge tanto o coração adolescente como o coração adulto.
Giza é a narradora e a grande protagonista dessa história de “A Filha das Flores”. Sob o seu olhar ela nos conta sua vida de menina aos oito anos de idade, em uma pequena cidade onde mora. Margarida e Florinda são suas tias, e claro, as flores que fazem parte dessa paisagem. São as flores que ela, ainda menina, aprende sobre o tempo, as circunstâncias e a razão de todas elas.
Para cada momento, uma flor. Nos casamentos, nas missas, as flores dos mortos, a cada ocasião as flores são usadas para expressar um sentimento. Para aqueles que nunca viveram no interior pode parecer algo estranho. Mas só aqueles(as) dotados(as) de uma sensibilidade sabem dizer algo através das flores. Giza vai aprendendo as coisas ao seu redor.
Mas como dizia aquela linda canção de Caetano Veloso, “Oração ao Tempo”, quando diz: “És um senhor tão bonito, quanto a cara do meu filho. Tempo, Tempo, Tempo...” Passa para todos nós. Somos filhos dele. E para Giza não foi diferente. Com a chegada da adolescência, as dúvidas, desejos desconhecidos que ambiciona desfrutar. Os hormônios das vontades adolescentes começam a falar mais alto, tudo isso vai transformando aos poucos uma menina em mulher. Tudo isso visível aos olhos do bom observador. Principalmente para suas tias (ou irmãs?), que mudam o tom amistoso de uma infância para a implicância com a nova adolescente.
Mas nesse ponto o leitor fará a seguinte pergunta: Quem são os pais de Giza? Essa pergunta vai sendo formulada na adolescência por Giza da seguinte forma:
“Eu seria filha de vovó? Quem sabe. Mas como? Se chamava as minhas tias de irmã de titias? Talvez não fosse filha de vovó nem de uma das titias. Fui descobrindo com os anos vindos, que eu não devia ser filha de ninguém – eu era fruto do amor daquela família, havia nascido de uma gravidez de todos eles. Me fiz de vida como nascem as plantas, dentro de uma plantação de vento. As titias nunca me diziam nada, e eu jamais perguntaria. Tinha medo de que meu corpo não viesse delas e que minha desconfiança, de que ele não mais quisesse crescer, fosse de vez confirmada. Talvez eu viesse de um ser adolescente. Mantive as minhas perguntas em segredo, e assim segurava as minhas esperanças, podendo ser filha de quem eu bem entendesse. A filha das Flores.” (pg. 39)
Giza vai notando que algo nessa conta familiar não fecha. Aos poucos vai se sentindo uma estrangeira. O que estará por trás desses subentendidos de família? Certa vez, viajando no seu carro de entrega de flores, ela ultrapassa as fronteiras rumo ao desconhecido que suas tias e o povo de sua cidade natal não lhe permitia ultrapassar. Mas ela segue. E se defronta com os mitos tenebrosos criados pelo medo.
“... e peguei o fusca da entrega rumo à maior aventura da minha vida: a proibição”. (pg. 68)
“A Filha das Flores” foi um romance que me surpreendeu. Ouvir a voz de Vanessa da Mata, narrando em vez de vê-la cantar foi uma experiência maravilhosa. Assim como sua voz, essa história saiu de sua alma mais profunda, e essa alma tem um nome: Giza. Um livro recomendado para todas as idades. Um livro que merece um lugar em sua estante.