Solar da fossa
Finalmente chega às livrarias um livro que conta toda a história do Solar da Fossa, contada pelo escritor curitibano Toninho Vaz - autor da biografia de Paulo Leminki “Leminski: O bandido que sabia Latim”, que já foi postada nesse blog.
“Solar da Fossa - Um Território de Liberdade, Impertinências, Ideias e Ousadias” é uma obra simplesmente inesquecível. Pois, verdade seja dita, Toninho Vaz tem o dom de eternizar seus objetos de pesquisa e nos presenteia com um texto, mais uma vez, preciso e gostoso de ler.
Seu nome fantasioso, "Solar da fossa”, como explica o autor, veio pelo carnavalesco salgueirense Fernando Pamplona que tinha acabado de se mudar para o “condomínio” depois de separar-se de sua mulher. O nome verdadeiro do lugar era “Pensão Santa Terezinha” provavelmente em homenagem à Igreja Santa Terezinha que estava logo ali ao lado da pensão e ainda se encontra lá - hoje ao lado de um shopping.
Tudo começou a ganhar proporções devido à população sempre flutuante, criativa, delirante, dionisíaca regada ao bom uísque London Tower e conhaque Dreher e muita galhofa. Tudo isso tornou essa Pensão um mito da vida carioca.
Ao acabar de ler esse livro a sensação que ficou foi: “- Caraca! Por que eu não estava ali, vivendo tudo aquilo?”
Confesso que me deu inveja. Em 1964, eu tinha 8 anos de idade e se aparecesse por lá, sozinho, provavelmente a dona Jurema Romão Cavalcanti, com seus cabelos oxigenados, fumando um imenso charuto atrás da recepção me expulsaria e ainda chamaria algum delegado da infância e juventude para me encaminhar ao juizado mais próximo. Enquanto lia o livro, fiquei imaginando, que alguns dos meus ídolos de infância como os jogadores do Fluminense, Samarone e Cabralzinho, passavam por lá. E eu, ainda menino, fazendo um álbum de figurinhas de meu time de coração. Nas palavras de Afonsinho, outro jogador de futebol que integrava a turba:
“o Solar era uma atração da cidade. Melhor que muita casa de espetáculo. A gente se reunia ali com uma tribo para ouvir os músicos tocarem”.
Mas se eu e muitos outros não pudemos viver aquela doideira, a narrativa de Toninho Vaz nos leva a esse período, nos deixando com água na boca e prestando um enorme serviço ao contar cirurgicamente esse microcosmo de uma das histórias da cidade mais linda do mundo.
Muita gente se empenhou em evitar a demolição do imóvel, cenário de histórias inesquecíveis. Mas não foi possível. A cidade cresce e pede passagem.
“A jornalista Alexandra Trifler, moradora do apartamento 84, reclamava em alto em bom som: Logo agora que os americanos chegaram à lua, vocês vêm me colocar no olho da rua. O estudante Evandro Guimarães, que ainda continuava na FGV, escolheu uma estratégia de escape, fazendo a mala e anunciando em tom de brincadeira: Vou morar na pedra da Moreninha em Paquetá. Enquanto houver sol eu vou ficando por lá.”
Esse era o clima de contestação. Uma outra época.
O casarão, de dois andares e 85 cômodos, foi demolido em 1972, depois de duras batalhas judiciais. Foi-se o imóvel e ficou a lenda. Depois de ler o livro, sempre quando passo, hoje, pelo shopping Rio Sul, vejo o quanto de história tem aquilo tudo. Há um sentimento de nostalgia. E, guardada as devidas proporções – também sinto o mesmo pelo Canecão. Dois lugares que mesmo demolidos sempre farão parte da cultura carioca.
Há uma pergunta que vai surgindo a cada história narrada no livro: por que todos esses artistas migravam para o Solar ? A resposta está na ausência de burocracia para locação, aluguéis baixos e a própria estrutura do negócio: 85 apartamentos de um dois ou três quartos, alguns sem banheiro. O esquema era parecido com os dos modernos apart-hoteis, os funcionários arrumavam os quartos e lavavam as roupas dos inquilinos, além de um mix eclético: prostitutas, jornalistas, travestis, bancários, carnavalescos, artistas, estudantes e revolucionários.
Aquilo era uma tramóia do dono do posto de gasolina da esquina, Frederico Mello, que tinha sublocado o imóvel em regime de comodato. Para ganhar um dinheiro, ele criou a Pensão Santa Teresinha, que ficou conhecida depois por Solar da Fossa, nome dado pelo Fernando Pamplona (ex-carnavalesco do Salgueiro)", lembra Vaz.
O Solar da Fossa ficou para a cultura pop brasileira como o Chelsea Hotel para a cultura pop nova-iorquina (no lendário Chelsea onde viveram artistas como Patti Smith, Robert Mapplethorpe, Joni Mitchell, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Leonard Cohen, e Arthur Clark que escreveu nesse mesmo hotel o livro “2001 uma odisséia do espaço” que virou filme e foi dirigido por Kubrick, entre outros). O problema é que a história do Solar se esfarelou com sua demolição.
O Solar da Fossa era quase uma “Grande família” que se transformava a cada chegada e saída de um novo morador. Habitado por artistas das mais variadas matizes, da literatura à música e ao teatro brasileiro, como: Betty Faria, Ítala Nandy, Darlene Glória, Caetano Velloso, Gal Gosta, Tim Maia, Paulo Leminski (ele escreveu parte de seu livro Catatau nessa pensão de tipos geniais), Antonio Pitanga, Marieta Severo, Aderbal Freire Filho, Paulo Diniz, Abel Silva, e os “tipos” de passagem, igualmente famosos como: o bailarino Lenny Dale, o escritor francês Jean Genet, o cantor Milton Nascimento, o ator José Wilker, o artista plástico Hélio Oiticica, e o próprio Ruy Castro que fez o prefácio e nos trás as suas recordações.
Foi no Solar da Fossa que Caetano Velloso compôs a música “Paisagem Inútil” e “Alegria, Alegria”. Paulinho da Viola compôs “ Sinal Fechado”. Grupos como o trio “Sá, Rodrix e Guarabira” e “Momento 4” se formaram no Solar.
É, tem lugares que por um momento, reúnem pessoas que um dia se tornarão fundamentais – o Solar da Fossa é foi um desses.
Mas o “clima” do país começou a dar sinais de mudanças. E não muito boas. O Ato Institucional – AI -5 foi decretado pelo governo militar. Quatro pessoas procuradas pelo Dops viveram ali naqueles anos nada agradáveis. Um deles o músico Ricardo Villas, que estava na lista dos guerrilheiros trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick.
Definitivamente, o que não falta nesse livro são boas histórias. A pesquisa de Toninho foi muito bem feita e só nos resta ler esta obra memorável que nos fala de um certo Rio, de um certo tempo, de uma certa forma de sentir, vestir, pensar e sonhar. Citando Leminski, acho que realmente houve uma “convergência mágica” nesse local, um “chamado” que reuniu todo esse pessoal para um mesmo endereço, num mesmo período.
Para os que ficam: boa leitura! Valeu cada página.