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Ruptura: A crise da democracia Liberal

Manuel Castels é doutor em sociologia pela Universidade de Paris, é professor nas áreas de sociologia, comunicação e planejamento urbano e regional e pesquisador dos efeitos da informação sobre a economia, a cultura e a sociedade em geral. Principal analista da era da informação e das sociedades conectadas em rede, sua obra virou referência obrigatória na discussão das transformações sociais do final do século XX.

O livro de que falaremos hoje chama-se “Ruptura: a crise da democracia liberal”. Esse livro é uma espécie de uma longa nota de rodapé para os seus trabalhos anteriores. O livro não contém nenhuma profecia, apenas delineia tendências para o longo prazo. Ele analisa uma série de momentos distintos, mas amplamente semelhantes, principalmente na política americana e europeia nos últimos anos. Trumpismo, Macronismo, Brexit e outros questionamentos sobre o efeito dos movimentos de massa na Espanha e sobre um eleitorado cansado de votar nos mesmos políticos corruptos dentro e fora do cargo.

Vamos ao livro?

Existe nos dias de hoje um consenso de que a democracia liberal se encontra em um momento difícil. O fosso existente entre os cidadãos e as ações dos atores políticos é tão grande que chegaremos à conclusão de que existe realmente uma crise na democracia liberal.

Em teoria, esse desajuste poderia ser autocorrigido na própria democracia liberal, com a pluralidade de opções. No entanto, na prática não é bem assim que funciona, pois as escolhas sempre se limitam àquelas opções que já estão enraizadas nos mesmos grupos de sempre.

Os partidos políticos diferem entre si, mas têm um ponto em comum: querem manter o monopólio do poder dentro de um quadro de possibilidades preestabelecidas, por eles mesmos. A política tornou-se profissional, os políticos tornaram-se um grupo social que defendem seus interesses comuns acima dos interesses daqueles que eles dizem representar. Em outras palavras, os políticos formam uma classe política que transcende as ideologias e cuidam de seus “oligopólios”.

Os cidadãos votam e elegem e algumas vezes até se mobilizam entusiasmados por aqueles em que depositam suas esperanças. E o refrão é sempre o mesmo: a esperança supera o medo da mudança. Uma tática emocional para lá de conhecida, onde o valor emocional tem como pano de fundo a manutenção de um velho poder político, com uma nova vestimenta.

Mas, à medida que essas esperanças vão sendo erodidas, a legitimidade e a resignação vão sendo substituídas pela indignação. Manuel Castells faz referência à famosa citação de Churchill que diz que a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos. Apesar de certificar-se que a democracia é a melhor forma de governo, há um desapontamento por parte das pessoas com relação à forma como a vivem.

Ao longo do livro, Manuel Castells investiga algumas das causas pelas quais a separação entre representantes e representados se acentua nas últimas décadas, até chegar ao ponto de ebulição da rejeição popular aos que estão lá em cima sem distinções.

No Brasil, as Jornadas de Junho de 2013, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016 e o número de votos nulos, brancos e abstenções no segundo turno das eleições presidenciais de 2018 são sintomas do quanto a democracia liberal está fatigada em nossas paragens. Manuel Castells não faz menção à América Latina diretamente, mas podemos tranquilamente incluir nossas experiências no cenário por ele apontado.

Manuel Castells nos apresenta algumas pistas para entendermos a crise de representatividade das democracias liberais.

A globalização da economia pode ser considerada como instrumentos que ajudaram a solapar e desestruturar as economias nacionais. O Estado-Nação não consegue responder aos problemas globais na origem, tais como as crises financeiras, violação dos direitos humanos, a mudança climática, a lavagem de dinheiro, o terrorismo.

E aí existe um elemento paradoxal para tudo isso que estamos vivendo. Qual elemento? Foram os próprios Estado-Nação que estimularam a globalização, desmantelando regulações e fronteiras desde a década de 1980, nas administrações Reagan e Thatcher. A desregulação febril, a privatização,  a liberalização e a crença de que os mercados eram autorregulados e resolveriam todos os problemas da sociedade levaram a desempenhos abaixo do ideal em muitos domínios, à crescente desigualdade na distribuição de riqueza e a crises recorrentes.

E agora são esses mesmos Estados que agora estão refazendo todo esse aparato global, causados pelo impacto provocado pelos efeitos negativos causados pela globalização e consequentemente o aumento da pobreza.

Os governos nacionais, sem exceção, decidiram unir-se à globalização para não ficarem de fora da nova economia e da nova divisão do poder. Para isso, o Estado-rede foi a resposta para essa nova forma de economia. A União Europeia foi a resposta política à globalização. Com o Estado- rede conectado internacionalmente, foi provocado  um enorme problema. O Estado-Nação se dissocia da nação. E com isso a sua legitimidade entra em crise.

Enquanto as elites dominantes se proclamam cidadãos do mundo, amplos setores sociais se entrincheiraram nos espaços culturais. As identidades políticas do cidadão, construídas a partir do Estado-Nação, vão sendo substituídas por identidades culturais.

A manipulação política e o sistema de recompensas promovido pela ganância empresarial repercutem no poder público, ou seja, eles transformam o Estado em uma empresa e reafirmam a visão de falência dos negócios públicos, privatizando o Estado. Nos dias de hoje muitos falam dos corruptos e poucos falam dos corruptores.

A crise financeira de 2008 desencadeou uma descrença nos políticos em todo o mundo, dando origem à crise de legitimidade que vivemos nos dias de hoje. A crise financeira gerou uma crise de desemprego que explodiu nos EUA. e na Europa. Foi a crise de um modelo de capitalismo global baseado na interdependência dos mercados mundiais e na utilização de tecnologias digitais para o desenvolvimento do capital virtual especulativo.

Foi com o dinheiro do contribuinte que essa forma de capitalismo foi salva. Instituições financeiras quebradas, como A.I.G., foram salvas com a anuência de Obama, que comprou 80% de suas ações, ou seja, praticamente nacionalizou essa seguradora.

Só para recordarmos, a A.I.G. é a maior seguradora dos Estados Unidos da América, a qual sofreu com a crise das sub-primes ao assegurar papéis de alto risco do mercado imobiliário americano. Sem recursos para pagar os papéis podres vendidos por bancos a investidores quando a crise estourou, a empresa foi socorrida pelo governo. No entanto, no universo paralelo de Wall Street, os executivos de bancos falidos saíram da quebradeira recebendo bônus milionários, conforme previstos em contrato. Uma lista de profissionais que deixaram os bancos falidos com “paraquedas dourados” recheados de cifras reluzentes. E quem pagou a conta desse mimo foi a população.

 

O resultado foi o famoso Ocupy Wall Street: em 17 de setembro de 2011, cerca de 150 pessoas ocuparam o Zuccotti Park, localizado em Manhattan, o distrito financeiro de Nova York. Segurando cartazes e gritando palavras de ordem, os manifestantes protestavam contra a desigualdade econômica e social nos Estados Unidos. O movimento, inspirado na Primavera Árabe, não possuía liderança e tinha como objetivo manter uma ocupação constante em Wall Street, a rua mais importante do distrito.

Nas ruas de Manhattan, em 17 de setembro, os manifestantes apareceram pela primeira vez segurando cartazes com o slogan do movimento: “We Are The 99%” (“Nós Somos os 99%”). A frase refere-se à disparidade econômica existente entre o 1% mais rico e todo o resto da população mundial.

O Estado de bem-estar social priorizou o bem-estar dos especuladores e fraudadores, sobrando aos cidadãos o custo da crise e do desemprego. A Europa trouxe um elemento chave para a crise de legitimidade política. O fechamento da torneira do crédito, sobretudo para as pequenas e médias empresas, os principais empregadores, ajudou na crise de representatividade nos dias de hoje.

Um outro ponto diz respeito a um novo fator que vai entrar em jogo: as políticas midiáticas criaram um novo universo no qual estamos permanentemente imersos. Nossa construção da realidade e, por conseguinte, nosso comportamento e nossas decisões dependem dos sinais que recebemos e trocamos nesse universo.

Esse primeiro reflexo emocional é marcado pelo universo visual. A impressão vai se tornando opinião, que se confirma ou se desmente na elaboração do debate contínuo que acontece nas redes sociais em interação da mídia. A luta política mais eficaz é a destruição moral da imagem de quem postula a ser líder. As mensagens negativas são cinco vezes mais eficazes em sua influência do que as positivas. 

Destruir a imagem do outro para eliminar o vínculo de confiança com os cidadãos. Acreditem, é quase um game. O jogo é quem consegue destruir a imagem do outro no universo emocional da política. Daí a busca de operadores políticos e profissionais no sentido de obter materiais prejudiciais para determinados líderes.

Para isso, as munições são acumuladas para serem colocadas nos momentos certos. Ofensas e defesas é o “game político”, escândalos são uma forma de esconder os debates de fundo. Não é novo isso. Os escândalos acabam resultando na escolha de “seu corrupto” ao invés do “corrupto do vizinho”. Em resumo, a política de desconfiança na carreira política é mais ou menos igual à luta de produtos de limpeza, onde o que vale é aquele que lava mais branco, e não o outro que deixa o amarelado moral prevalecer. Tudo isso contribui para a crise de legitimidade.

Nas redes digitais em que todos podem se expressar, ondas bravias de bots se multiplicam e difundem imagens e frases de efeitos aos milhares e, ao mesmo tempo, um novo mundo começa a surgir: o mundo da pós-verdade, da qual a mídia tradicional acaba participando, contribuindo para que a incerteza seja a única verdade confiável. No fundo, por trás de tudo, está nas palavras de Manoel Castells “a estratégia para se destruir as esperanças. Para que tudo fique igual”.

Se na política existe um elemento emocional forte, uma das mais poderosas emoções humanas é o medo. Manuel Castells chama de ménage à trois composta pelo terrorismo, o medo e a política. Após os ataques de 11 de Setembro nos Estados Unidos, a chamada guerra ao terror vem produzindo narrativas cada vez mais assustadoras, pois há sempre um inimigo da humanidade a ser abatido. Desta vez, o Estado Islâmico, grupo terrorista, proveniente das lacunas deixadas pela Al-Qaeda. As consequências produzidas pelo terrorismo global transformaram-se em perigo constante, produzindo o pânico à xenofobia, à islamofobia e ao autoritarismo.

E é assim que a crise de legitimidade democrática foi gerando um discurso do medo e uma prática política que propõe a volta das oligarquias econômicas, volta à nação, como fronteira aparente do direito ancestral da etnia majoritária como nos Estados Unidos. Voltar à família patriarcal, voltar a Deus como fundamento. Restituir o nacionalismo cristão como Jair Bolsonaro faz. Reconstruir as instituições de coexistência em torno de pilares herdados da história ameaçados pela transformação multidimensional de uma economia global.

Foi nesse cenário que apareceu na nação mais poderosa do mundo (os EUA) um bilionário tosco especulador imobiliário envolvido em crimes e negócios sujos, nacionalista radical, sexista, homofóbico, racista: Donald Trump. Como bem salienta Manuel Castells, antes de chamar os Estados Unidos de uma corja de fascistas e racistas. os Estados Unidos elegeram Barack Obama duas vezes para presidente. Um presidente negro progressista.

Donald Trump chegou ao poder através de uma ruptura com o establishment político. Sofreu a rejeição do seu partido. Nenhum congressista americano o apoiou. Jeb Bush, Ted Cruz e Marco Rubio, nenhuma corrente o apoiou, incluindo o Tea Party (partido populista de direita), que apoiavam os dois últimos, Marco Rubio, e Ted Cruz. Trump saiu vitorioso não só do debate, mas ganhou o coração e as mentes de um Estado profundo, desassistido, desempregado, fruto das políticas anteriores que levaram o país à recessão e ao desemprego.

Para isso Trump atacou a imigração, chamando os mexicanos de estupradores e narcotraficantes. E simbolizou a sua xenofobia com a promessa de construir um muro intransponível contra a imigração.

Trump identificou a migração como inimiga do povo, ecoando um sentimento geral, sobretudo entre os trabalhadores: “América First!”.

Quem votou em Trump foi a América profunda, a classe operária branca (reduto democrata), que havia sido e ainda está sendo golpeada pelos efeitos da globalização ressentida com a imigração.

Ao invés de apaziguar o racismo, a eleição de Obama aguçou-o, levando para Trump o voto do ressentimento racial dos brancos menos instruídos, mas igualmente majoritariamente entre os homens de classe média. O motivo, como já foi dito acima, se deu a partir do ano de 2000. quando os EUA perderam 7 milhões de empregos industriais. O ódio às elites se estendeu aos imigrantes que competiam por empregos e assistência pública.

Trump, como qualquer outro presidente dos EUA, ajoelhou-se ao poder de Wall Street, que tanto havia criticado durante a sua campanha. Durante a sua presidência, ele tentou de tudo para desestabilizar as instituições americanas.  Mas foi impedido pelos meios de comunicação, pela independência do poder do Judiciário, pela independência partidária do FBI e por fim pelo Congresso, incluindo muitos republicanos que se afastaram de Trump por abuso de poder.

Na Europa o mesmo fenômeno ocorreu à vitória nacionalista de Trump. O Brexit foi um movimento inacreditável que ninguém conseguiria imaginar tempos atrás: a maioria da população do Reino Unido aprovou, por uma margem pequena de votos, é verdade, mas decidiram sair da União Europeia. Para isso, “o projeto medo” promovido pelos partidários da permanência na União Europeia contou com a presença de autoridades e personalidades econômicas e políticas, prevendo um cataclisma econômico caso o Brexit vencesse.

Nada disso se produziu. Na verdade, houve uma reação popular contra as elites políticas, que se alinharam com unanimidade em favor da União Europeia. 

E essa rejeição ajudou o Brexit. A popularidade do primeiro-ministro Cameron, que havia ganho as eleições de 2015 por maioria absoluta, foi neutralizada por conservadores como Boris Johnson, ex-prefeito de Londres e líder dos eurocéticos do Partido Conservador. E contou com a ajuda do Partido de Independência do Reino Unido de extrema direita (Ukip, sigla em inglês), com o seu dirigente xenófobo Nigel Farage, que havia vencido as eleições para o Parlamento europeu um ano antes, atiçado pela imprensa marrom, como os jornais The Sun e Daily Mirror, adeptos da pós-verdade.

Os partidários do Brexit centraram sua mobilização com um objetivo fundamental: o controle do destino do próprio país. O local se opôs ao global. Mas é bom que se diga que não foi um nacionalismo de cunho imperial, ancorado na nostalgia de um passado glorioso, mas um reflexo defensivo, buscando proteger o direito de estar em casa sem interferências. O momento importante dessa atitude se deu através da recusa à imigração, em particular os imigrantes do Leste europeu.

A descrença na legitimidade também chega à França após a crise econômica de 2008, que puxou 3 milhões de franceses para o desemprego. Com duas catastróficas experiências presidenciais de Sarkozy e Hollande, criou-se o imaginário de que a globalização seria a principal responsável pelo descrédito em relação aos principais partidos do país.

Formado na tecnocracia do Estado e avesso tanto às demandas dos socialistas quanto dos políticos de direita, o presidente francês tem uma posição clara frente aos partidos políticos. Emmanuel Macron, alto funcionário e inspetor da Fazenda, financista do banco Rothschild e, por fim, ministro da Economia no governo socialista do primeiro-ministro Valls, com quem estava em confronto, decidiu tirar vantagem da divisão e da confusão dos socialistas, deixando o partido e seu posto no governo e lançando uma candidatura independente, um ano antes da eleição presidencial. 

Macron foi eleito, e ninguém queria ver a possibilidade de uma França nacionalista que, após o triunfo do Brexit, poderia derrubar o União Europeia, o que gerou pânico de uma tal forma que Macron foi acolhido como salvador da Europa e cortejado de imediato por Merkel e demais líderes, inclusive por Trump, que curiosamente havia apoiado Le Pen e até o difamou durante a sua eleição.

A vitória de Macron foi uma vitória da democracia liberal?

Nem tanto, o grande vencedor foram os abstencionistas e os eurocéticos de direita e de esquerda. Mesmo a vitória de Macron nas eleições legislativas correspondeu a somente 15% do eleitorado, o mesmo da corrida presidencial, 16%. Em síntese, a crise de legitimidade política derrubou os partidos tradicionais.

Manuel Castells aponta três falhas principais na construção da União Europeia. A primeira é a falta de uma identidade comum. A crise migratória foi um fator desestabilizador.

A segunda é que o projeto de construção política identificado com a civilização foi um projeto elitista e tecnocrático, imposto aos cidadãos sem debate algum. Nas palavras de Castells, “foi um projeto para o povo, mas sem o povo”.

A terceira falha está na criação do euro em 1999, uma moeda comum para economias tão díspares em termos de produtividade e competitividade. Sem uma unificação correspondente da política fiscal e do sistema bancário, foi considerado autodestrutivo por economistas como Paul Krugman e Joseph Stiglitz.

A crise do euro evidenciou a diferença de interesses entre países da União, a desconfiança entre seus povos e a dominação dos interesses financeiros sobre as prioridades sociais nas políticas das instituições europeias. 

Manuel Castells menciona a alternância de poder na Espanha entre o Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), onde a aparente paz nessa alternância esconde conflitos e frustrações permanentes, sufocados por acordos políticos, que abriam caminhos para uma corrupção sistêmica. Todos em aliança estratégica com as elites financeiras e empresariais em torno de um projeto de modernização do país.

Na Catalunha, segundo Castells, Jordi Pujol, que chefiava a rede Convergência e União (CIU), governou praticamente apoiado na extorsão de empresas. Com o sistema financeiro eclodindo e a credibilidade dos partidos em queda livre, surge o clamor por uma democracia real. No movimento de 2011, que acabou sendo conhecido como 15 de maio, onde protestos pacíficos reivindicavam mudanças sociais e  políticas em toda a sociedade espanhola, um nítido recado crítico aos partidos políticos.  Manifestações que ocorreram também no Brasil em 2013, nos EUA e no restante da Europa e no mundo árabe..

 

Os “indignados”, como se autodenominou o movimento, tentaram reinventar a democracia em sua própria prática, mediante uma organização em assembleias deliberativas, que combinou os debates no espaço público urbano com a interação constante no espaço público virtual das redes de internet. Construíram, assim, um território híbrido entre o real digital e o real urbano. Essa era a condição indispensável para se encontrar, se reconhecer e buscar novas formas de relação política e utopia cultural das quais pudesse surgir uma democracia diferente, das formas vazias e cínicas que ocupavam as instituições sem controle dos cidadãos, com escasso respeito aos princípios que proclamavam. Foi, nesse sentido, uma expressão aberta da crise de legitimidade política latente tanto na Espanha como no resto do mundo.

Apartados dos sindicatos e movimentos sociais, 15M reuniu “os indignados”. Através dessa mobilização, surge o Podemos e o Partido X. O último é o resultado da união de ativistas que buscavam uma representação fiel aos seus ideais do movimento. No entanto, esse partido não conseguiu se consolidar como o outro partido o Podemos.

As palavras de Castells sobre o Podemos nos dão a noção desse fenômeno político.

 “O crescimento do Podemos, tanto na presença quanto em perspectivas eleitorais, é um caso único na história recente europeia: esta é uma observação empírica, não um juízo de valorativo. Em janeiro de 2015, apenas um ano depois de sua criação, as pesquisas do CIS o situavam em primeiro lugar nas preferências da intenção direta de voto (ou seja, o que os cidadãos expressavam antes que os analistas elaborem os dados). Foi então que se alastrou o pânico no establishment de direita e da esquerda. Podia ser aberto um caminho pacífico rumo a uma transformação revolucionária do Estado porque naquele momento o Podemos não moderava a linguagem.” (pg. 119, pg 120).

Mas as elites financeiras e as potências europeias se mobilizaram em torno de uma estratégia articulada em três iniciativas. Isolar e desprestigiar o Podemos, considerado cada vez mais uma ameaça política para a estabilidade do sistema.

No subcapítulo destinado à questão catalã e à crise do Estado espanhol, Castells rememora os fatos ocorridos em 1º de outubro de 2017, quando mais de 2 milhões de cidadãos da Catalunha tentaram votar o referendo da independência da região, mas não conseguiram graças à negativa do governo de Mariano Rajoy em reconhecer o resultado. A consequência desse processo traumático foi a fratura ainda mais profunda entre a Espanha e a Catalunha.

O 15-M transformou-se em fonte de inspiração para outros importantes movimentos sociais em rede que floresceram por toda a Europa, pelos Estados Unidos e pela América Latina. Os movimentos Occupy Wall Street nos EUA, e os movimentos sociais em rede floresceram por toda a Europa, e os movimentos de la Place de la Republique, em Paris.

O Podemos construiu um espaço virtual, denominado Ágora, que permitiu a incorporação modular de milhares de pessoas ao debate e à tomada de decisões em torno de suas iniciativas políticas. E, para além do próprio espaço de deliberação, o Podemos praticou uma autêntica guerrilha cultural, em múltiplas frentes e com plataformas multimodais, que o transformou no ator político de referência no ciberespaço. 

As teses debatidas no Podemos são reflexos de problemas reais, e não fantasias ideológicas. Em síntese, o Podemos como força política existe graças à expressão política direta do 15-M no espaço parlamentar. Ou seja, como entrar nas instituições sem ser cooptado pelo sistema. Sua trajetória é acompanhada com atenção em todo o mundo e faz parte do imaginário coletivo dos novos atores sociais e políticos de gerações mais jovens.

Para isso a aposta no surgimento dessa nova ordem de uma nova política que substitua a obsoleta democracia liberal que, manifestamente, está caindo aos pedaços em todo o mundo, porque deixa de existir no único lugar em que pode perdurar: a mente dos cidadãos.

Fico por aqui. E indico “Ruptura: a crise da democracia liberal”, de Manuel Castells. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 24 setembro 2021 | Tags: Sociologia


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Ruptura: A crise da democracia Liberal
autor: Manuel Castells
editora: Jorge Zahar
tradutor: Joana Angélica d’Avila Melo

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