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Rinoceronte

Eugéne Ionesco, Samuel Becket, Jean Genet e Harold Pinte, Edward Albee, Camus, entre outros, foram os protagonistas daquilo que ficou conhecido como “O Teatro do Absurdo”. E o que vem a ser o teatro do absurdo? Esse movimento surge como uma crítica da tese realista que dominou a cena teatral desde a época de Henrik Ibsen. Para isso, criam uma nova forma de drama adequado a um mundo visto como desprovido de propósito, autoridade moral legítima e dignidade humana. É bom lembrar que nunca existiu nenhum movimento organizado. Muitos dramaturgos classificados sob esse rótulo, quando questionados se pertencem ou não ao Teatro do Absurdo, dirão que não pertencem a tal movimento. Pois cada um dos dramaturgos em questão busca expressar a sua visão pessoal de mundo, sem estar vinculado a movimento algum.

O termo “Teatro do Absurdo” foi cunhado por Martin Esslin, que, em seu livro “O Teatro do Absurdo”, publicado em 1961, sugere que a condição humana é essencialmente absurda. Entre outras coisas, a literatura tem suas raízes na ficção de Franz Kafka.

As influências desse que Martin Esslin chama de Teatro do Absurdo passa por diversas escolas, da Comédia dell’arte passando pelo expressionismo, dadaísmo, surrealismo, passando por Charles Chaplin e Buster Keaton e o cinema mudo. Ionesco chegou a dizer que sua peça “A lição e as cadeiras” (peça que em breve estará aqui resenhada) foi influenciada pelos Irmãos Marx.

As características desse teatro são os efeitos cênicos, cenas loucas, disparate verbal, literatura de sonho e fantasia e pesadelo. Personagens ingênuos e ineptos, e eventos cômicos, horríveis e absurdos. 

As ideias desse tipo de teatro surgiram primeiro por meio de Alfred Jarry, que se concentrou na ciência das soluções imaginárias. Alfred Jarry, dramaturgo de Ubu Rei (peça já resenhada aqui no site), foi precursor desse sistema, quando um grupo de pensadores do pós Segunda Guerra Mundial inventou as regras do que depois veio a ser denominado de College de Patphysique. Patafísica pode ser definida como algo “além da metafísica”. Os patafísicos inventaram regras e regulamentos para a metafísica do absurdo, é a antirrazão.

Existencialistas como Sartre e Albert Camus passaram a ver os seres humanos como criaturas isoladas, que habitam um universo estranho, que, por sua vez, não possui uma verdade, valor ou significado inerente. Os existencialistas foram os primeiros a colocarem seus personagens para um novo contexto. No centro do pensamento de Camus, está a tese de que a existência humana é absurda e que os seres humanos buscam sentido na existência. Mas, com o desaparecimento das crenças tradicionais como religiões e ideologia, sabemos que essa busca não tem sentido.

E não há nada de negativo no absurdo. Aceitar que a vida é absurda é abraçar a visão realista da vida: a ausência de lógica universal. O teatro do absurdo se esforça para explicar seu senso de falta de sentido da condição humana e a inadequação da abordagem racional pelo abandono aberto de dispositivos racionais e pensamento discursivo.

Quando as peças de Ionesco, Beckett, Genet e Adamov apareceram pela primeira vez no palco, elas confundiram e ultrajaram a maioria dos críticos e também o público. E não é de se admirar. Essas peças desprezaram todos os padrões pelos quais o drama foi julgado por muitos séculos; devem, portanto, aparecer como uma provocação para as pessoas que vieram ao teatro esperando encontrar o que reconheceriam como uma peça bem feita. Entendendo-se por peças bem feitas personagens bem construídos e convincentes, realisticamente falando.

As ações desses personagens nas palavras de Martin Esslin em seu livro “O Teatro do Absurdo” não contêm nenhum ser humano reconhecível e apresentam ações desmotivadas, sem diálogos engenhosos e logicamente construídos. Em “O Rinoceronte”, de Ionesco, os diálogos são desprovidos de um sentido, de um enredo. Muitas vezes não tem um começo ou fim claros ou desenvolvimento e exploração. Parecem refletir muitas vezes pesadelos e sonhos em vez de até mesmo tentar segurar um espelho para a realidade. Totalmente separado de suas raízes religiosas, metafísicas e transcendentes, o homem está perdido, todas as suas ações se tornam sem sentido, absurdas, inúteis.

Bem, falemos um pouco do nosso autor de hoje, Eugéne Ionesco. Filho de pai romeno e mãe francesa, nasceu na Romênia em 1909. Foi para a França em 1913. Após o divórcio de seus pais, Ionesco foi morar com seu pai. Na Universidade de Bucareste, ele começou a estudar francês. Acaba se desentendendo com o pai e vai morar na França com a mãe. Casou-se e no ano de 1944 sua filha nasceu.

Após a Segunda Guerra Mundial, Ionesco estabeleceu-se definitivamente na França, onde obteve a nacionalidade em 1950. Trabalhou então como revisor editorial. Como escritor, conheceu alguns fracassos, mas alguns membros do College de Patphysique estavam presentes. Longe de desanimar, Ionesco continua sua atividade de redação de dramas com ainda mais vigor.

A obra de Ionesco é alimentada por alguns mitos antigos. O colapso da linguagem caracteriza o seu estilo. A comunicação mecanizada perde o sentido e deixa entrever o vazio e a extrema solidão que assombram seus personagens. Se o universo é profundamente trágico, o burlesco sempre desempenha um papel de contraponto. Com o tempo, a angustia sempre desempenha um papel de contraponto.

Dito isso, vamos falar sobre “O Rinoceronte”?

Em um domingo de sol, Bérenger e Jean se encontram em um café. Bérenger encontra-se malvestido, despenteado, enquanto Jean veste um terno elegante e dá uma bronca em Bérenger por estar atrasado. Ele zomba de Bérenger por beber tão cedo e estar sempre de ressaca. Critica as roupas de Bérenger. Jean lhe dá uma gravata extra, um pente e um espelho. Jean lista todas as maneiras como Bérenger precisa melhorar sua aparência e declara que tem vergonha de ser seu amigo. Desesperado, Bérenger diz que não aguenta trabalhar em um horário normal de trabalho e ter uma agenda normal de vida e precisa beber para relaxar. Jean, por outro lado, adverte ao amigo que todos precisam se acostumar com isso. Enquanto os dois estão conversando, um rinoceronte corre pela rua. Bérenger parece não perceber, mas a garçonete, o merceeiro, a merceeira, a dona da casa e Jean se levantam e apontam para ele.

Na mesa ao lado, três personagens: o Lógico, um outro que é um senhor idoso e uma dona da casa. Subitamente, eles veem um rinoceronte, que derruba as cestas de mantimentos. A dona de casa pede para que o Lógico segure seu gato enquanto ela arrumava sua cesta derrubada por um rinoceronte. Enquanto isso, Jean insiste em falar sobre o rinoceronte, mas Bérenger não se interessa. Ele sugere que o rinoceronte pode ter fugido do zoológico ou de um circo, embora Jean diga que na cidade não tem nem zoológico nem circo.

Jean está irrascível e acusa Bérenger de ser um alcoólatra que não pensa. Quando os dois estão discutindo, Daisy chega ao armazém ao lado. Percebendo que Bérenger gosta de Daisy, Jean aproveita a oportunidade para dizer ao amigo que pare de beber. Bérenger explica que, quando ele não bebe, fica apavorado.

O senhor idoso e o Lógico continuam a conversar. O Lógico apresenta ao velho cavalheiro alguns silogismos.

“Todos os gatos são mortais. Sócrates é mortal. Logo, Sócrates é um gato.

Senhor idoso: E tem quatro patas. É verdade, eu tenho um gato que se chama Sócrates

Lógico: está vendo?” (pg 30)

Enquanto estão todos conversando separadamente, outro rinoceronte corre pela cidade. Acaba matando o gato da dona de casa. A dona de casa chora e volta com o corpo do gato.

As pessoas se perguntam se o segundo rinoceronte era igual ao primeiro, mas Jean afirma que havia dois rinocerontes diferentes: o primeiro era um rinoceronte asiático com dois chifres, enquanto o segundo era um rinoceronte africano com um chifre. 

Berenger insiste que isso é ridículo, já que os rinocerontes estavam se movendo rápido demais para que fosse possível contar seus chifres. Jean insulta Bérenger ao dizer que tem condições de avaliar se tinha um ou dois chifres, pois estava sóbrio.

“Jean: O caso é que eu não estou no escuro. Eu vejo rápido, porque tenho o espírito lúcido.” (pg 41)

No dia seguinte, Botard, Dudar, Sr Papillon e Daisy chegam ao trabalho. A discussão sobre o rinoceronte invade o dia de trabalho. Botard insiste que o rinoceronte é inventado, uma invenção da imprensa. Ele denuncia a segregação e a igreja, acusa que todos aqueles que viram o rinocerontes são uns desocupados. Daisy insiste que viu o rinoceronte, mas Botard zomba dela. Quando Bérenger entra no escritório, ele acaba entrando na conversa. Botard diz que ele não é uma testemunha confiável, pois ele ama Daisy e é um alcoólatra. Eles discutem quantos chifres tem um rinoceronte. Sr Papillon coloca todos para trabalhar para acabar com esse papo. Todos começam a trabalhar até que Botard acusa Dudar de fazer parte de um grupo de rinocerontes.

A Sra Boeuf chega perturbada e sem fôlego. Ela explica que o marido está doente e que um rinoceronte a perseguiu e está esperando-a na base da escada. Botard agora admite que o rinoceronte existe e pode ver que um rinoceronte tem um chifre, embora não saiba se é asiático ou africano. A Sra Boeuf percebe que o rinoceronte é seu marido, então o Sr Papillon promete demiti-lo.

Botard ameaça envolver o sindicato. Daisy chama o corpo de bombeiros para tirar todos que estavam no escritório, enquanto a Sra Boeuf pula escada abaixo e cai nas costas do marido. Daisy retorna com a notícia de que o corpo de bombeiros está operando no máximo, pois existem outras chamadas sobre rinocerontes. Até que finalmente os bombeiros chegam e todos saem pela janela.

Depois de tudo, Bérenger vai visitar Jean, que não está bem e não reconhece a voz do amigo. Jean tosse e diz que se sente mal, mas não sabe o que há de errado com sua saúde, apesar de se sentir cheio de saúde. Mas sua voz está mudando. Sua pele está endurecendo. Jean começa a comer uma revista e insiste que as pessoas o enojam e ele as atropela. Jean grita que quer substituir a moralidade pela lei da selva e insiste que o humanismo está morto.

“Jean: Eu lhe digo que não é tão mal assim! Afinal, os rinocerontes são criaturas como nós, têm o direto a vida, tal como nós!

Bérenger: Com a condição que não destruam a nossa. Você já pensou na diferença de mentalidade?

Jean (indo e vindo do quarto, entrando no banheiro e saindo), você acha nossa preferível?

Bérenger: Mesmo assim, temos uma moral ao nosso modo, que eu acho incompatível aos animais.

Jean: (idem) Moral! Lá vem a moral! Estou farto de moral! É linda a moral! É preciso ir além da moral!

Bérenger: E o que você põe no lugar dela?

Jean: a natureza!

Bérenger: a natureza?

Jean: A natureza tem as suas leis. A moral é antinatural

Bérenger: Se eu estou compreendendo bem, você quer trocar a lei moral pela lei da selva.

 Jean: E eu viverei lá, viverei lá

Bérenger: Fácil dizer, mas no fundo, ninguém...

Jean (interrompendo-o, indo e vindo) É preciso reconstituir a base da nossa vida. Precisamos voltar à integridade primitiva(pg 82) “

Jean sugere que Bérenger é preconceituoso porque pensa mal dos rinocerontes. Aos poucos, ele se transforma em um rinoceronte. Aterrorizado, Bérenger corre em busca de ajuda.

Vários dias se passaram e, agora, rinocerontes estão surgindo por toda a cidade. Dudard vai visitar Bérenger e revela que o Sr Papillon, o chefe deles, decidiu a se juntar à manada de rinocerontes. Daisy chega e os três personagens parecem se unir em um desejo mútuo de permanecer humanos. Mas, na medida em que eles discutem a situação, Dudard começa a se utilizar de uma falsa lógica para defender os rinocerontes. Dudard fica hipnotizado por  suas reflexões sobre os rinocerontes, até que finalmente pula da janela e se torna um deles.

Daisy e Bérenger estão apaixonados. Bérenger percebe que eles são os únicos humanos que restam na Terra, todos se transformaram em rinocerontes. Bérenger propõe a Daisy a missão de repovoar a Terra. Mas Daisy começa duvidando de tudo e começa a se afastar de Bérenger e se torna também um rinoceronte.

Deixado sozinho no palco, Berenger luta com sua própria sanidade. Pela primeira vez, ele pensa em se tornar um rinoceronte, mas foge disso com decisão. Ele termina a peça com um forte compromisso com sua humanidade, sua individualidade e sua moralidade, dizendo:

“Contra todo o mundo, eu me defenderei! Eu me defenderei contra todo mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo até o fim! Não me rendo” (pg 125)

Eugéne Ionesco escolhe o rinoceronte, que é feroz, brutal, obtuso, para representar o homem transformado pela ideologia. Todos com exceção de Bérenger, sucumbem à “rinoncerite”. Entre eles, o Lógico, Dudard, Botard e Jean apresentam um terreno psíquico favorável ao contágio ideológico. Sucumbiram às massas, despojados de sua individualidade e da capacidade de experimentar a vida por si mesmos.

Peguemos o personagem “O Lógico”. Como seu nome sugere, não existe pessoalmente, sua carteira de identidade não menciona um nome, mas a profissão: “lógico profissional”. Ele usa e abusa de uma lógica abstrata e sua forma de raciocinar sobre todas as coisas irrelevantes levadas ao absurdo. Botard, um ex-professor dotado de uma mente metódica, adere aos rinocerontes, ao que é cientificamente comprovado. Dudar faz de tudo objeto de análise. Se exime de sentir.

Rinoceronte é uma peça contra a histeria coletiva e epidemias que se escondem sob a capa da razão e das ideias, mas que no fundo são doenças coletivas graves, cujas ideologias são apenas álibis. Basta olharmos para as redes sociais e podemos constatar a histeria de gado. Sectarismo com quem não pertence à sua seita.

As ideologias se tornam idolatria, os sistemas automáticos de pensamento se erguem, como uma tela entre o espirito e a realidade, distorcendo o entendimento. Criam barricadas entre homens e o homem, tornando impossível qualquer diálogo, qualquer coexistência porque um rinoceronte não consegue concordar que não é rinoceronte.

Fico por aqui. Indico “O Rinoceronte”, de Eugéne Ionesco, como um livro fundamental para os dias de hoje. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 19 maio 2021 | Tags:


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Rinoceronte
autor: Eugéne Ionesco
editora: Nova Fronteira

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