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O Castelo

“O Castelo”, de Franz Kafka, eu estava para ler havia muito tempo. Protelei até onde pude, mas felizmente posso dizer que peguei o livro e li em quatro dias intensos. Devo já dizer a todos que me acompanham que não é um livro fácil. O livro não tem um fim, pois Kafka veio a falecer antes da conclusão, que fica em aberto. Mas, para quem gosta de uma literatura com “L” maiúsculo, pode ler sem receio.

Se você me perguntar, entre o “O Processo” e “O Castelo”, qual eu gostei mais, gostei um pouco mais do primeiro. Em comum, os dois livros carregam praticamente o mesmo personagem. Em “O Processo” era Joseph K. Em “O Castelo” é K., apenas. Mas em “O Castelo”, em compensação, vemos o herói mais altivo que no primeiro. Um homem que desafia o sistema de um pequeno vilarejo, do qual falaremos logo a seguir.

“− Não posso emigrar − disse K. − vim aqui para ficar aqui. E vou ficar. E numa contradição que não se esforçou para explicar, acrescentou, como se estivesse falando consigo mesmo: − O que poderia ter me atraído para este lugar ermo se não fosse o desejo de permanecer aqui?” (pg 207).

“O Castelo” é o segundo livro do autor que resenho. Preciso ler ainda “A metamorfose”, “Na colônia penal”. Li “América”, do autor, há muito tempo, antes de ter o site. Mas prometo que vou resenhar. Preciso ler de novo. É um livro extremamente tenso. Aliás, qual livro de Franz Kafka não tem uma tensão? Só para que vocês tenham uma ideia, Kafka nunca colocou os pés nos Estados Unidos e no entanto, o relato é como se ele tivesse escrito esse livro lá.

Após essa breve introdução, vamos ao livro. A minha edição da Companhia das Letras tem um posfácio excelente de Modesto Carone intitulado “O Fausto do século XX”, onde ele fala com muita propriedade sobre “O Castelo”. Vou logo adiantando. Um posfácio que nos ajuda a entender o livro, que, como já disse anteriormente, é complexo, cuja leitura precisa de atenção. A dificuldade do livro está no fato de estar sendo narrado em terceira pessoa, sob a perspectiva de K. O narrador não está em todos os lugares. Em alguns momentos nos perdemos dele, ele não nos ajuda esclarecendo os fatos, muitas vezes caímos em diálogos absurdos e eventos sem sentido. Mas não desanime, prossiga. Faz parte do labirinto criado por Franz Kafka.

Vamos ao livro?

K., o personagem central, chega a um vilarejo remoto e pede acomodação em um albergue. Quando ele está dormindo, é acordado e lhe dizem que ele não pode dormir na aldeia e, portanto, deve partir. Após o incidente. K. revela que é o agrimensor solicitado pelo Conde e, quando isso é confirmado por uma ligação telefônica para o Castelo, ele é relutantemente autorizado a ficar. Na manhã seguinte, K. tenta chegar ao Castelo, mas a neve estava muito intensa, impedindo a movimentação. Ele não consegue ir muito longe, além de estar visivelmente esgotado para seguir em direção ao Castelo. Em suas tentativas de encontrar pessoas amigáveis, acaba esbarrando nas hostilidades dos locais, e para outros moradores locais algumas dúvidas.

É nesse momento que surgem dois assistentes para ajudar K., mas K. não tem ideia do trabalho que será designado a ele, nem pode contatar as autoridades competentes do castelo para saber o que fazer.

Sua afirmação é rejeitada pelos funcionários da aldeia, e o romance relata os esforços de K. para obter o reconhecimento de uma autoridade indescritível. Arthur e Jeremiah se apresentam a K. como seus assistentes, mas oferecem um alívio cômico à história em vez de uma ajuda genuína.

“– Ele tem razão, é impossível; sem permissão nenhum estranho pode ir ao castelo.

– Onde é preciso pedir permissão?

– Não sei, talvez com o administrador do castelo.

– Então vamos fazer o pedido por telefone, telefonem já para o administrador, os dois.

 Eles correram para o aparelho, pediram ligação obedientes e de maneira ridícula – e perguntaram-se K. podia ir com eles no dia seguinte ao castelo. O “não” da resposta K. ouviu da sua mesa, mas a resposta era ainda mais detalhada. Ela dizia: -nem amanhã nem em qualquer outra ocasião.“ (pg 36)

 “– Quando o meu mestre pode ir ao Castelo?

– Nunca – foi a reposta” (pg 39)

 

O Castelo é dominado e definido por uma desilusão. A primeira decepção é que o Castelo se revelou muito menos castelo do que K. acreditava ser. Não era nem uma velha fortaleza nem uma nova mansão, mas uma pilha irregular de prédios pequenos e compactados de um ou dois andares. Parecia uma cidadezinha. Quando se aproximou, ficou desapontado: era uma cidadezinha de aparência miserável, típicas casas de vilarejo, cujo mérito era terem sido feitas de pedra, mas o gesso há muito havia descascado e parecia estar se desintegrando.

“Mas, ao se aproximar, o Castelo o decepcionou, na verdade era só uma cidadezinha miserável, um aglomerado de casas de vila, que se distinguiam por serem todas talvez de pedra, mas pintura tinha caído havia muito tempo e a pedra parecia se esboroar. K. lembrou-se fugazmente de sua cidade natal” (pg 18, pg 19)

Foi quando ele recebe uma carta vinda do Castelo, e o mensageiro se anuncia como Barnabás. Inicialmente K. espera que Barnabás possa levá-lo até o Castelo, mas descobre que tudo não passou de um mal-entendido. Quando K. pensava que estava indo para o Castelo, na verdade estava indo para casa de Barnabás, onde morava com Olga e Amália.

“Tinha sido então um mal-entendido, um mal-entendido comum e mesquinho, e K. havia se rendido completamente a ele. Tinha deixado de se encantar pela jaqueta de Barnabás que brilhava como seda e que agora ele desabotoava e sob a qual aparecia uma camisa de tecido grosseiro cinzenta de suja, toda costurada, sobre o peito forte e anguloso do criado” (pg 53)

 Barnabás tem duas irmãs: Olga e Amália. A família defrontou-se com uma tragédia. Os aldeões idolatram os funcionários, que para eles são criaturas celestiais. E é costume dos aldeões agradar os funcionários, satisfazer os seus caprichos. Em conversas mantidas com as irmãs de Barnabás, K. toma conhecimento que elas foram marginalizadas por recusar uma abordagem sexual de um funcionário chamado Sortini. E o crime que elas cometeram foi a recusa. Os aldeões idolatravam os funcionários. Quando Amália (a irmã mais nova de Barnabás) se recusa ao encontro sexual com Sortini em uma pousada, a notícia se espalha e a família fica isolada – todos os moradores param de se comunicar com eles. A tentativa do patriarca da família de implorar o perdão acabou rendendo uma doença grave.

A principal ação concreta dos funcionários do Castelo parece ser dormir com as moças da aldeia, que ficam eternamente gratas por qualquer contato com elas. Ironicamente, dormir com um oficial torna uma jovem “respeitável”.

 

K. precisa entrar em contato com o Castelo. É como se ele mesmo estivesse impondo essa agenda para ele próprio, no sentido de desafiar e entrar no Castelo. Todos são inacessíveis. Todos os seus estratagemas falham. Nos faz lembrar o mito de Sísifo, onde os deuses condenam Sísifo a carregar uma pedra ao topo da montanha, e vê-la rolar. Nada mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

Em todos os pontos, suas tentativas são frustradas pelas circunstâncias da aldeia. K. não consegue entender a psicologia dos moradores ou o absurdo do sistema burocrático e administrativo do Castelo. O prefeito informa a K. que sua nomeação foi, na verdade, um erro; não há posição para um agrimensor. Em vez disso, é oferecido a K. trabalho como zelador da escola até que a situação seja corrigida. K. continua sua luta para entrar no Castelo enquanto enfrenta as pressões de seu novo relacionamento, a atividade fútil de seus assistentes e o antagonismo de seus novos vizinhos.

“O prefeito diz a K.: “É um princípio de trabalho da administração que não se levem absolutamente em conta as possibilidades de erro. Esse princípio é justificado pela excelente organização do todo, sendo necessário para que se atinja a velocidade extrema de execução” (pg 102)

 A história será uma busca incessante através de voltas e reviravoltas que K. inutilmente tenta navegar em sua busca por autoridade do Castelo raramente vista. De oficial em oficial, ele tenta em contato com Klamm, que era o elo entre o Castelo e a vila, e que de uma certa forma encarna o próprio Castelo, pois era considerado quase como um ser superior, poderoso e inatingível.

K tenta uma audiência, apenas para aprender a cada vez que Barnabás não só é incapaz de colocá-lo em contato com Klamm, mas ele tem ainda obstáculos a superar, como a busca por outros indivíduos supostamente bem relacionados, e enfrentar os obstáculos burocráticos que só Franz Kafka consegue descrever com tanta exatidão.

Por exemplo, ele descobre desde cedo que Frieda, uma ex-garçonete da pousada Herrenhof, é amante de Klamm e imediatamente inicia um relacionamento romântico com ela na crença de que se casar com ela o deixará mais perto do seu objetivo.

K. procura entender o Castelo. Ao contrário da maioria dos aldeões que aceitam o Castelo como ele é, sem se preocupar muito em entendê-lo. O prefeito reconhece a ambiguidade do Castelo, mas confia em sua autoridade:

– Muito simples disse o prefeito. – O senhor na verdade nunca manteve um contato real com nossas autoridades. Todos esses contatos são apenas aparentes, mas o senhor por ignorar as circunstâncias, toma-os por reais” (pg 112)

Todos consideram presunçoso por parte de K. querer conhecer e interpretar o Castelo. Para K., compreender significa domínio, condicionado ao seu desejo. A narrativa de Kafka nos convida a identificar com a fé obstinada de K. no Castelo como o objetivo de sua busca, e podemos vivenciar que existe uma transcendência nessa procura. K. conversa sobre o Castelo, e tal conversa, na verdade, é tão importante quanto o Castelo em si. O desejo da compreensão, no meu humilde modo de ver, é o cerne da questão. A impossibilidade de se conhecer o Castelo se transforma em um desejo de ir até as últimas consequências.

No mundo imaginado por Kafka, não há como escapar desse sistema, não adianta se rebelar contra tudo aquilo, só resta a K. conhecê-lo:

“Certamente sou ignorante, a verdade permanece de qualquer forma e isso é muito triste para mim, mas existe também a vantagem de que o ignorante ousa mais e por esse motivo quero com prazer, carregar mais um pouco a ignorância e suas más consequências – enquanto as energias para tanto forem suficientes.” (pg 90)

Para K., o único consolo é seguir o caminho mapeando as nossas ignorâncias. “O Castelo”, de Franz Kafka, é um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 30 outubro 2020 | Tags: Literatura fantástica


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O Castelo
autor: Franz Kafka
editora: Companhia das Letras
tradutor: Modesto Carone

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