A fascinação das palavras
Pela primeira vez, aqui no “Bons Livros para Ler”, trago um gênero literário que ainda não havia ainda sugerido uma obra, referência ou um autor, e, por prezar pela importância dos ineditismos na vida, começo pelo título “A fascinação das palavras”. Julio Cortazar se notabilizou por ser um dos maiores contistas da história da literatura moderna. O livro é uma entrevista em que ele nos mostra o seu processo criativo, além de outros temas.
A vida de Cortázar é repleta de acasos. Por exemplo, mesmo sendo sua família de origem argentina, nasceu em Bruxelas, no ano e no mês que marcaram o início da Primeira Guerra Mundial, agosto de 1914, pois seu pai trabalhava na embaixada desse país. Após a guerra, em 1918, a família retornou à Argentina. Seu pai se separou de sua mãe e abandonou a família, e o pequeno Julio seria criado pela mãe, tia e avó. Acabou tornando-se professor universitário na Universidade de Cuyo, mesmo sem possuir o diploma universitário. Em 1945, ano em que Perón foi eleito presidente da Argentina, desistiu da carreira docente e foi trabalhar na Câmara Argentina do Livro.
A oportunidade para a viagem à França surgiu com uma bolsa do governo francês e Julio Cortázar chegou a Paris decidido a ficar. Conseguiu um emprego como tradutor na ONU que, além de um salário regular, lhe permitiu viajar para muitos países e se estabelecer definitivamente na França, como pretendia. Casou-se três vezes. A morte de sua terceira mulher, Carol Dunlop, mergulhou-o numa forte depressão. Pouco depois, durante a entrevista que deu origem a este livro, foi diagnosticado com leucemia, que o mataria em 12 de fevereiro de 1984.
Neste livro, “A fascinação das palavras”, o reverenciado escritor Júlio Cortázar é entrevistado pelo escritor uruguaio Omar Prego Gadea. Afirmo que acertei na escolha. Uma obra que hoje se encontra entre os melhores livros que li.
“A fascinação das palavras” é uma imperdível entrevista com Julio Córtazar e uma “aula” sobre o universo desse gênero. E tenho certeza que, dependendo do nível de intimidade que cada um tenha com as palavras, pode ser uma libertação, a apropriação da força necessária para entrar na realidade de que esse grande escritor nos convida a fazer parte em cada um de seus contos.
A ideia que Cortázar nos transmite é que as nossas portas para se alcançar outra realidade sempre se mantiveram fechadas, ou seja, a “A Casa está Tomada”, parodiando o título de um de seus contos do livro “O Bestiário”. Por alguma razão, existe um conforto ou uma falsa segurança em não se conferir os ruídos que vêm do interior dessa casa (nós mesmos), e se prefere manter os quartos fechados. Para Júlio Cortázar, podemos tomar conhecimento de uma nova realidade ao dobrar uma esquina – e sermos sutilmente apresentados a um universo fantástico.
A entrevista compilada para este livro foi realizada quando Julio Cortázar estava com leucemia, doença que o matou. Mas seu raciocínio continuava firme. Devido à lucidez de suas respostas frente às perguntas e a clareza com a qual destrincha sua obra, cheguei a ignorar seus sofrimentos durante a leitura, me atendo apenas em entender o mundo fantástico de seus contos.
“A Fascinação pelas palavras” começa por perguntas relacionadas à infância do escritor, que, ao lembrar-se desse período, nos fala sobre o valor que as palavras sempre despertaram nele. As palavras sempre tiveram um valor maior do que o significado funcional que elas representavam. Por exemplo: a palavra “cadeira” não tem sentido separada do objeto cadeira. Mas para Cortázar poderia representar uma nova realidade, no seu aspecto de linguagem. Assim, para ele, a palavra “cadeira” era simplesmente uma palavra. Aos poucos, ele criou um repertório de palavras de que gostava, principalmente aquelas que “tinham um formato e uma certa cor” (palavras de Julio Cortázar), as palavras fetiches, como ele as chamava. E isso o acompanhou ao longo de toda sua vida.
Na entrevista, o próprio Cortázar deu o exemplo de uma atriz que ele nunca tinha visto em sua vida e que se chamava Lola Membrives, muito famosa na Argentina. Ao escrever com o dedo “Lo-la-Mem-brives” e, outra vez, “Lo-la-Mem-bri-ves”, aquele desmembramento foi adquirindo para ele um valor fetiche. O menino Cortázar passou a desvincular cada vez mais as palavras de sua utilidade pragmática. Com seus dedos de criança, ele escrevia e via palavras se formando no ar.
Foi a partir daí que uma insatisfação com a realidade aparente o tomou de assalto. Ele procurou uma nova realidade que o atraísse de maneira irresistível e que não lhe permitisse aceitar e ver as coisas como eram dadas.
A batida de uma porta ao mesmo tempo em que chega um perfume de flores e um cachorro late ao longe não significa nada para você, certo? Mas para Cortázar era uma espécie de iluminação, que o colocava em outra existência indefinível. Esses fatos simultâneos são corriqueiros para nós devido à força do real. Mas para o nosso autor isso é a prova de que o cérebro do homem, sua capacidade imaginativa, tem, de forma não evidente, a possibilidade de transformar a noção de realidade, criando diferentes figuras. Por isso, em seus contos, a recusa a essa realidade é onde mora o busílis da sua questão. É onde mora o fantástico.
Não entendendo o fantástico como o terror que vemos nas telas de cinema. Mas a realidade como uma invenção humana. O resultado da eliminação de tudo que está sendo recusado, ou seja, essa realidade em que vivemos. E é nessa eliminação que reside esse fantástico. Os personagens só existem em sua obra para que um ato fantástico, uma trama fantástica, se realize.
A entrevista aborda vários pontos. Mas fico por aqui. A única coisa que posso dizer é que essa entrevista é uma aula de um dos maiores escritores do mundo. E você não tem o direito de matar essa aula. Portanto, abandone a realidade como ela é e vamos saborear o fantástico livro “A fascinação das palavras”. Um livro que merece um lugar de honra em sua estante.