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A dupla chama: amor e erotismo

Octavio Paz nasceu em 1914, perto da Cidade do México, em uma proeminente família ligada à elite política, cultural e militar do México. Seu pai foi um grande aliado de Emiliano Zapata, o líder de uma revolução popular ocorrida naquele país em 1911. Alguns anos depois, muitos zapatistas foram forçados a ir para o exílio quando o líder foi morto. Sua família morou em Los Angeles, Califórnia, por um tempo.

Quando retornaram à Cidade do México, a situação econômica da família começou a entrar em crise. Octavio Paz, no entanto, brilhava no seu início como poeta, obtendo sucesso crescente em seus poemas e contos em publicações locais. Seu primeiro livro de poesias, Luna silvestre, apareceu em 1933. Enquanto frequentava a faculdade de Direito teve contato com o já famoso poeta Pablo Neruda, que o encorajou a participar de um congresso de escritores de pensamento de esquerda na Espanha.

A Espanha estava vivendo uma violenta Guerra Civil e se juntou à brigada que lutava contra os exércitos fascistas de Franco. Octavio retornou ao México com a missão de popularizar a causa republicana espanhola e passou algum tempo em Berkeley, Califórnia e Nova York nos anos seguintes.

Octavio Paz desfrutou de uma reputação mundial como poeta e ensaísta. Era um homem culto, conhecedor do mundo e dotado de uma formação pessoal e profissional muito erudita. Em 1945, ingressou no serviço diplomático mexicano. Viveu fora do país e teve contato com as mais altas expressões intelectuais da época. Sua carreira recebeu grande influência dos movimentos que testemunhou pelo mundo. Residiu em Paris entre 1946 e 1952, participando do movimento surrealista, depois de seu encontro com André Breton, quando experimentou a escrita automática, e logo depois morou no Japão e na Índia.

Partidário quando jovem das Revoluções Mexicana e Soviética, Paz se desiludiu com elas na metade do século 20 e, “testemunha sempre atenta dos diversos períodos, porém visionário também por sua perspectiva poética, percebeu que a partir do final dos anos 1960 o mundo enfrentaria numerosas revoltas de todo tipo, sendo a estudantil a primeira”.

Seus anos como diplomata transformaram a sua visão política. Foi nesse período, então, que Paz “começou a distinguir a diferença entre realidade e ideologia, entre possibilidade e esperança”.

A carreira diplomática de Paz terminou após a cruel repressão e consequente morte de vários estudantes em outubro de 1968 na Praça de Tlatelolco, e renunciou ao posto de embaixador na Índia. Considerado por muitos o maior conflito em toda a sua biografia política e intelectual, essa ruptura acabou dando a Octavio Paz mais tempo para dedicar-se à sua poesia e à sua obra ensaística e, ao mesmo tempo, mais independência para suas análises políticas. Seu ato de rebeldia contra o governo mexicano foi interpretado como sua independência, o que lhe rendeu enorme visibilidade e prestígio nos meios intelectuais.

Vamos ao livro “A dupla chama: amor e erotismo”? O título nos fornece o tema do ensaio: Octávio Paz faz uma distinção fundamental entre sexualidade e erotismo.

Foi escrito quando Octavio Paz aproximou-se da idade de 80 anos. Seus pensamentos estavam voltados para o amor. "Não era um pouco ridículo, no final dos meus dias, escrever um livro sobre o amor?", perguntou-se ele, pensando que um soneto satírico poderia ser mais apropriado. "Ou é uma despedida, um testamento?", ele se perguntou. Mas a ideia de tal ensaio havia muito tempo estava com ele.

Octávio Paz, no prefácio do livro, confessa:

“A verdade é que comecei na minha adolescência. Meus primeiros poemas foram de amor e desde então esse tema aparece constantemente em minha poesia” (pg 5).

O livro “A dupla chama: amor e erotismo” fornece uma história social e literária do amor e do erotismo, comparando as manifestações modernas com as épocas anteriores, embora observando a relação especial entre erotismo e poesia.

 O erotismo de acordo com Octávio Paz está ligado à poesia:

“A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal...” (pg 12).

“A imagem poética é o abraço de realidades opostas e a rima é copulação de sons” (pg 12).

O erotismo não é mera sexualidade animal. É também cerimônia e representação, diz Octávio Paz. O erotismo é uma metáfora da sexualidade animal. Uma metáfora que está além da realidade que lhe dá origem, algo novo e distinto dos termos que a compõem. O erotismo, é uma experiência inteiramente humana. O erotismo é sexual, a sexualidade não é erotismo.

O livro nos mostra uma jornada através da história do amor no Ocidente, que faz escalas na Grécia antiga, Alexandria e Roma, enfatiza a importância da cultura árabe, passa pela Idade Média narrando a ascensão e queda da cultura provençal. E termina sua análise na era moderna, com elogios especiais à ênfase do Surrealismo no amor exclusivo.

O islâmico, o árabe, o persa, o indiano e o extremo oriente também conheceram o culto do amor ou do amor como religião. Para o Ocidente, a idealização do corpo da mulher torna-se espiritualizado.

Na Grécia antiga não existiu nenhuma filosofia verdadeira sobre o amor. O amor tinha algo contemplativo (o amor platônico). Não era algo inteiro, era uma aventura solitária.

Em uma entrevista concedida a Betty Millan, da Folha de S. , a jornalista perguntou:

O sr. afirma que Platão teria ficado escandalizado com o que nós chamamos amor. Seria possível comentar isso?

“Octávio Paz − Para Platão, o amor não tinha o sentido que damos ao amor e que surgiu na Idade Média com a poesia provençal. O amor para ele era o erotismo, a ação de Eros, o deus da luz e da escuridão, o mensageiro, a força atuante. Platão concebia o amor como um desejo de beleza, que terminava na contemplação das ideias eternas. Ademais, o amor não se dirigia a uma mulher, e sim aos efebos.

O amor de que falamos, e que hoje pode ser homossexual, nasceu como uma paixão heterossexual. Nele existe um gosto pelo sofrimento, pela tragédia, como em Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta, que teria escandalizado Platão.
O amor também escandalizou os cristãos, pelo fato de se colocar numa criatura humana o que é próprio da divindade. Lope de Vega diz que, no amor, a gente busca o eterno no que é perecível. O amor é uma blasfêmia para a Igreja; ele é subversivo diante da filosofia e da religião.” (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/19/mais!/38.html)

Octávio Paz examina as tradições literárias e filosóficas de várias épocas, às vezes analisando poemas específicos no contexto do amor e erotismo. A pesquisa de Paz deixa clara a centralidade da posição das mulheres na sociedade, como nestas palavras dele: “a história do amor é inseparável da história da liberdade das mulheres”. Se uma cultura proibia as mulheres de serem agentes ativos no amor, então o amor genuíno não poderia florescer.

A atenção de Octávio Paz é voltada imediatamente para o elemento que determina a passagem do erotismo para o amor: a pessoa. A esse respeito, não existe na Grécia antiga nenhuma filosofia verdadeira de amor. 

Nos primeiros quatro capítulos, a ideia ocidental de amor é exposta − a evolução da ideia até a sua maturidade no século XII. As notas essenciais são então resumidas no quinto capítulo. São elas: a) exclusividade b) o obstáculo e a transgressão; c) dominação e submissão d) fatalidade e liberdade; e) a pessoa.

A primeira nota característica do amor é a exclusividade. A exclusividade requer a reciprocidade, o acordo do outro, sua vontade. A exclusividade é a exigência ideal e sem ela não há amor.

O segundo elemento é o obstáculo e a transgressão. O diálogo entre o obstáculo e o desejo se apresenta em todos os amores e assume sempre a forma de um combate. Alude à autonomia da paixão em relação à ordem social, de classe, de idade. Os amores proibidos. Como observa Octávio Paz, o amor nasceu no Ocidente, nas cortes feudais, numa sociedade acentuadamente hierárquica. A potência subversiva está na violação do código feudal. Por exemplo, uma dama casada, cujo apaixonado é um trovador, esquece voluntariamente sua soberania e cede a sua soberania.

O terceiro elemento é a domínio e a submissão. O amor tem sido e é a grande subversão do Ocidente. Como no erotismo, o agente da transformação é a imaginação. Mas, no caso do amor, a mudança se dá em relação contrária: não nega o outro nem o reduz à sombra, mas é a negação da própria soberania. Essa autonegação tem uma contrapartida: a aceitação do outro. Em outras palavras, o relacionamento entre duas liberdades, de forma que o amor não nega o Outro ou reduz o Outro. É a busca de uma reciprocidade livremente concedida.

O quarto elemento é a fatalidade e a liberdade. O amor é atração involuntária em relação a uma pessoa e a voluntária aceitação dessa atração.

“A forma mais antiga em que se apresenta essa contradição está na crença das poções mágicas. Em todos os povos aparecem contos e lendas que têm como tema essas crenças.” (pg 114).

O extraordinário é que essa crença coexiste com o oposto: o amor nasce de uma decisão livre, a aceitação voluntária do destino."

O quinto elemento essencial é a pessoa. A palavra “pessoa” é um composto de uma alma e um corpo na tradição de Platão. A palavra pessoa em Roma significa a máscara do autor teatral.

“A pessoa é um ser composto de uma alma e um corpo. Aqui aparece outro grande paradoxo do amor, talvez o mais importante, seu nó trágico: amamos simultaneamente um corpo mortal, sujeito ao tempo e seus acidentes e uma alma mortal” (pg 115 e 116).

Octávio Paz parte de Platão através do cristianismo e dos trovadores da Provença para varrer o romantismo e a psicanálise antes de terminarem no deserto ou no paraíso do pós-modernismo, dependendo do seu ponto de vista.

Octávio Paz, como poeta, acredita que os poetas estão dizendo a verdade, ou pelo menos tentando descobri-la. Em vez de afirmar que a poesia é uma forma de codificar e padronizar motivos de uma tradição literária complexa e estrita, ele lê poemas como expressões de sentimentos sinceros.

Enquanto alguns críticos contemporâneos argumentam que a poesia de amor medieval e renascentista quebra, até mesmo ataca, o corpo do amante listando os encantos femininos um a um, Octávio Paz acredita que a amada mulher na renascença é celebrada e reconhecida como ela mesma.

Para Octávio Paz, a grande arte não pode ser maculada pela misoginia. Só os poetas têm o poder de mostrar que o amor nos liga uns aos outros através de séculos. Ele insiste em todo o poder da imaginação para transfigurar a experiência, reconciliar opostos em guerra e nos dissolver em um novo lugar onde não tememos nem nossos desejos nem nossa dependência do objeto do desejo. 

O erotismo, ele sugere, é o ser humano imaginativamente em jogo com um objeto sexual desejado (de ambos os sexos). O amor verdadeiro é fundado no reconhecimento da subjetividade do outro.

Fico por aqui. “A dupla chama: amor e erotismo”, de Octávio Paz, é uma leitura intrigante, rica em insights e estimulante em suas múltiplas reflexões. Não é, contudo, um livro acadêmico, e suas páginas históricas e sociológicas são altamente poéticas. Vale a pena ler esse ensaio pela empolgante habilidade e elegância do discurso de Octávio Paz, que nos faz acreditar que a poesia está dentro de nós, pois onde há poesia existe o amor. Por isso, esse livraço merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 15 fevereiro 2019 | Tags: Erótico


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A dupla chama: amor e erotismo
autor: Octávio Paz
editora: Siciliano

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