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1984

Vou ser muito franco: quando acabei de ler “1984”, de George Orwell, não tive dúvidas de que o questionamento filosófico que ele faz cabe muito nos dias de hoje. O livro precisa ser entendido como uma fábula sobre o poder totalitário na época em que George Orwell viveu.

O totalitarismo, na época em que esse romance foi escrito, tem algumas sutilezas que encontramos nos dias de hoje. E não são poucas, não, são muitas. As redes sociais − falaremos sobre elas em outro momento, na resenha de outro livro − guardam muitas semelhanças com os dias em que Orwell escreveu “1984”. Quem seria o “Grande Irmão” nos dias de hoje? Bem, eu diria que os algoritmos nos dias de hoje guiam o nosso pensamento para regiões bem obscuras. Chego a pensar que nos comportamos muitas vezes como zumbis de algoritmos.

Um dos detalhes mais assustadores de “1984” é que as telas também podem observar os habitantes. O teórico social Michel Foucault sustentou que uma característica central da sociedade moderna é o controle suave da vigilância. Informa nossa sensibilidade, disciplinando-nos sem força aberta e obrigando-nos a aderir ao comportamento normativo. Agora, temos a Agência de Segurança Nacional examinando nossos telefones, o Google vasculhando nossos mecanismos de pesquisa e nossas TVs de alta tecnologia capazes de nos assistir. Orwell sabia do que estava falando.

Ainda assim, a vigilância visa predominantemente a nos capturar para um mercado. Se você está lendo isso em uma tela, provavelmente está ignorando os anúncios em uma barra lateral. Como eles sabiam que você é um solteiro de 40 e poucos anos? Ou uma mulher que quer tênis de corrida? Ou um homem que gosta de ler, como é o meu caso?

Uma das questões abordadas no livro é a distinção entre verdade (as questões e circunstância de um evento) e fatos (o que se acredita serem as questões e as circunstâncias de um evento). Em seguida, o livro explora as nuances sócio-políticas-éticas-morais da manipulação do mal, fatos para controlar indivíduos.

Kellyanne Conway, assessora de Donald Trump, durante uma entrevista ao “Meet The Press” em 22 de janeiro 2017, defendeu uma falsa declaração do secretário de imprensa da Casa Branca, Sean Spice, sobre o número de pessoas que estavam na posse de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. Quando pressionada durante uma entrevista para explicar a declaração de Spicer, Conway afirmou que Spicer estava falando de fatos alternativos. Quando foi questionada que fatos alternativos não são fatos, mas falsidades, ela foi amplamente criticada por jornalistas. A frase foi definida como uma frase orwelliana. E não foi à toa que o livro “1984” teve uma venda estrondosa, graças à frase de Kellyanne Conway, na Amazon.

 

Mas antes de falar sobre o livro gostaria de dizer que minha edição da Companhia das Letras vem com três presentes. Três comentários de intelectuais que eu adoro: de Eric Fromm, escrito em 1961; de Bem Pimiott, escrito em 1989, ou seja, na data do fim do Império Soviético; e de Thomas Pynchon, escrito em 2003. De todos, devo confessar que me identifiquei mais com o último. Falarei sobre ele mais no final.

George Orwell é o pseudônimo de Eric Arthur Blair, nascido em 1903, em Morthari, em Bengala, na Índia, durante no período do domínio colonial britânico. Foi morar na Inglaterra com sua mãe e foi educado em Henley e em Sussex. Como a literatura não era um assunto aceito para meninos na época, Orwell estudou os escritores-mestres e começou a desenvolver seu próprio estilo de escrita. Em Eton, ele entrou em contato com ideais liberais e socialistas, e foi aqui que suas visões políticas iniciais foram formadas. Morou na Birmânia em 1922, onde serviu como superintendente assistente de polícia por cinco anos.  A sua antipatia pelo imperialismo britânico o fez desistir. Em 1928, Orwell mudou-se para Paris e começou uma série de empregos com baixos salários. Em 1929, ele se mudou para Londres, novamente vivendo no que chamou de “pobreza bastante severa”, o que o fez escrever, em 1933, o seu primeiro romance, chamado “Na pior em Paris e Londres”,  que foi traduzido no Brasil.

Nessa época, enquanto Orwell lecionava em uma pequena escola particular em Middlesex, ele sofreu sua primeira pneumonia devido à tuberculose, uma condição que o atormentaria por toda a vida e exigiria hospitalização novamente em 1938, 1947 e 1950. Trabalhou em uma livraria onde conheceu Eileen O'Shaughnessy. Ele e Eileen se casaram em 1936, pouco antes de se mudar para a Espanha para escrever artigos de jornal sobre a Guerra Civil espanhola.

Na Espanha, Orwell encontrou o que procurava: lutar por um verdadeiro estado socialista. Ele se juntou à luta contra o partido fascista. Enquanto lutava na Espanha, Orwell levou um tiro e depois contraiu tuberculose em um hospital espanhol. Ele  e sua esposa, Eileen, conseguiram escapar da Espanha. O partido apoiado pelos soviéticos estava realizando um expurgo e apoiou os fascistas para impedir a verdadeira revolução.

Nas palavras de Thomas Pynchon, foi na Espanha que George Orwell aprendeu a diferença entre o antifascismo real e o falso. Sua luta contra o totalitarismo e a favor de um socialismo democrático foi o que o orientou.

Logo após Orwell e Eileen adotarem um filho em 1944, Orwell tornou-se correspondente de guerra para o Observer em Paris e Colônia, na Alemanha. Tragicamente, Eileen morreu no início daquele ano, pouco antes da publicação de um de seus romances mais importantes, “A Revolução dos Bichos”. Apesar de sua luta contra a saúde precária, Orwell escreveu, em 1948, o livro “1984”. Casou-se em 1949 e veio a falecer em 1950 por tuberculose. Embora esses sejam os romances mais famosos de sua carreira, suas memórias, outros romances e o trabalho essencial como ensaísta contribuem para o corpo de trabalho que compõe importantes publicações do século XX.

Confesso a vocês que acompanham este site que eu não gosto de falar muito sobre a vida dos escritores que indico, pois é uma forma de incentivar a curiosidade do leitor. Mas, no caso de George Orwell, sua vida foi cheia voltas e reviravoltas dignas de um grande filme. Fiquem certos de uma coisa: vocês verão muitos livros desse grande autor aqui neste espaço.

Vamos a ele? Bem-vindos a “1984”.

Winston Smith é um membro de baixo escalão do Partido no poder em Londres, no país da Oceania. Em todo lugar que Winston vai, até em sua própria casa, o Partido o observa através de telões. Em todo lugar que olha, vê o rosto do líder aparentemente onisciente do Partido, uma figura conhecida apenas como Grande Irmão. O Partido controla tudo na Oceania, até a história e a linguagem das pessoas. O Partido estava implementando uma linguagem inventada chamada Novafala, que tenta impedir a rebelião política, eliminando toda a possibilidade de pensamentos rebeldes, que eram considerados ilegais. Esse crime de pensamento é, de fato, o pior de todos os crimes.

Bem, aqui cabe um parêntese: nesta era digital, todos somos vigiados, e a razão tem um nome, chama-se segurança. O seu celular pode ser monitorado, sua televisão sabe quais os programas que você assiste. E por aí vai.

Quando o romance se abre, Winston se sente frustrado com a opressão e o rígido controle do Partido, que proíbe o pensamento livre, o sexo e qualquer expressão de individualidade. Winston não gosta de nada que vive e compra ilegalmente um diário para escrever seus pensamentos criminosos. Ele também se fixa em um poderoso membro do Partido chamado O'Brien, que acredita ser um membro secreto da confraria − o misterioso e lendário grupo que trabalha para derrubar o Partido.

Winston trabalha no Ministério da Verdade, onde altera registros históricos para atender às necessidades do Partido. Ele percebe uma colega de trabalho, uma linda garota de cabelos escuros, olhando para ele, e se preocupa que ela seja uma informante que o denunciará por seu crime de pensamento. 

O Partido sequer tem um nome. É simplesmente Partido, uma estrutura onipresente e absoluta. As palavras de Ordem do Partido eram:

Guerra é paz; Liberdade é escravidão; Ignorância é força.

Nesse mundo de contradições, o Ministério da Verdade controlava toda a produção intelectual, de notícias a livros, de músicas a jornais. O Ministério da Paz era responsável pelas guerras. O Ministério do Amor controlava a Polícia, a Lei e a Ordem. O Ministério da Pujança cuidava da economia. A língua inglesa estava aos poucos sendo substituída pela Novafala, um idioma em que as palavras tinham significados contraditórios e as abreviaturas dominavam.

Ele está preocupado com o controle da história do Partido: o Partido alega que a Oceania sempre foi aliada à Eastasia em uma guerra contra a Eurásia, mas Winston parece se lembrar de uma época em que isso não era verdade. O Partido também afirma que Emmanuel Goldstein, o suposto líder da Confraria, é o homem mais perigoso vivo, mas isso não parece plausível para Winston. Winston passa a noite perambulando pelos bairros mais pobres de Londres, onde os proletários, ou proles, vivem vidas esquálidas, relativamente livres do monitoramento do Partido.

Para escapar da tirania do Grande Irmão, Winston começa a escrever um diário – um ato considerado traição, podendo redundar em morte. Caso fosse capturado, seria certamente pela “Polícia das Ideias”, que controla todos os pensamentos.  Winston estava determinado a permanecer humano em circunstâncias desumanas. No entanto, telões são colocados em toda parte – em sua casa, que não passava de um cubículo no seu trabalho, na lanchonete onde ele come, mesmo no banheiro. Nenhum lugar é seguro.

Durante o evento chamado “Dois minutos de ódio”, Winston chama a atenção de um membro do Partido, seu nome é O’Brien, que ele acredita ser um aliado. Ao mesmo tempo, Winston acredita que uma garota chamada Julia, que trabalhava no Departamento da Ficção, era a sua grande inimiga e sonha em vê-la destruída. Só que Winston se surpreende quando essa menina de cabelos escuros que ele acredita ser uma espiã secretamente lhe entrega um bilhete em que está escrito: “Eu te amo”. Os dois se encontram e rola uma química entre os dois apesar da diferença de idade. E começam a traçar planos para ficarem sozinhos.

Os dois fazem amor e começam a desenvolver uma lealdade contra o Partido e o Grande Irmão. Eles se encontram um quarto. Estão realmente apaixonados. Juram amor e lealdade um para o outro e nada poderá separá-los. Muito embora saibam que um dia poderiam ser pegos. Mas mesmo assim juram um amor incondicional um pelo outro e nas piores circunstâncias.

Nessa hora aparece O’Brien, que eles acreditam ser um membro da Confraria. Mas aqui cabe um parêntese: muito antes de conhecer Julia e O’Brien, Winston sempre foi obcecado para encontrar a Confraria. E o que vem a ser a Confraria? A Confraria seria uma resistência armada com o objetivo de derrubar o Partido, mas ninguém sabia ao certo se era real ou lenda.

Com o aparecimento de O’Brien afirmando ser um membro da Confraria, uma série de perguntas são feitas e o próprio O’Brien providencia para que Winston receba uma cópia do livro cujo autor chamava-se Emmanuel Goldstein, ex-aliado do Grande Irmão que se tornou o grande inimigo.

Winston pega o livro e lê com Julia cochilando ao seu lado. Quando ouvem um barulho atrás de uma pintura da sala, descobrem uma tela de televisão. O resultado não poderia ser outro. Foram presos e separados. Winston está nas profundezas do Ministério do Amor, que de amor não tem nada. É uma espécie de prisão sem janelas, onde fica sentado por dias seguidos, e sozinho.

É nessa hora que a verdade começa a aparecer. O’Brien chega. Inicialmente pensa que ele também foi pego, mas percebe que ele estava lá para torturá-lo e quebrar o seu espírito. O Partido sempre esteve ciente dos “crimes” de Winston; na verdade, O’Brien o acompanhava nos últimos sete anos.

Após meses de tortura, O’Brien, que tinha como objetivo mudar a maneira de pensar dos indivíduos, faz um jogo de ideias chamado de duplipensamento. E o que isso significa?

Duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas memórias precisam ser alteradas; em consequência, sabe que está manipulando a realidade; mas graças ao exercício do duplipensamento, ele também se convence de que a realidade não está sendo violada. (pg 252)

O’Brien passa os meses seguintes torturando Winston a fim de mudar sua maneira de pensar – empregando o conceito do duplipensamento. Winston acredita que a mente humana deve ser livre e, para permanecer livre, é preciso acreditar na verdade objetiva, como 2 + 2 =4. Só que O’Brien quer que Winston acredite que 2 + 2 = 5, mas Winston resiste.

Mesmo o nome dos quatro ministérios que nos governam exibem uma espécie de descaramento na inversão deliberada dos fatos. O Ministério da Paz cuida dos assuntos de guerra; o Ministério da Verdade trata das mentiras; o Ministério do Amor pratica a tortura; e o Ministério da Pujança lida com a escassez de alimentos. Essas contradições não são acidentais e não resultam da mera hipocrisia: são exercícios deliberados de duplipensamento. Pois somente reconciliando contradições é possível exercer o poder de modo indefinível. É a única maneira de quebrar o antigo ciclo. Se quisermos evitar para sempre o advento da igualdade entre os homens – se quisermos que os Altos, como os chamamos, mantenham para sempre suas posições -, o estado mental predominante deve ser, forçosamente, o da insanidade controlada.” (pg 254, pg 255).

O’Brien leva Winston para a temida sala 101, a sala mais temida de todas no Ministério do Amor, o lugar onde os prisioneiros encontram o seu maior medo. O maior medo de Winston são os ratos. Uma máscara de arame é colocada na cabeça de Winston e O’Brien ameaça abrir a porta para que os ratos passeiem livremente em seu rosto e o desfigurem. Nesse momento, Winston perde o vínculo com a humanidade quando grita dizendo: “Façam isso com Julia!”.

A partir desse momento ele é um homem mudado. Sentado em um Café observando os telões, ele vê Julia novamente. Ela também havia mudado, parecendo mais velha e menos atraente. Ela admite que também o traiu. No final, a triste conclusão: Winston passa a amar o Grande Irmão.

A grande pergunta que fica é: o que podemos aprender com George Orwell? Bem, o Ocidente se apropriou de “A Revolução dos Bichos” (livro que ainda não li, mas será o próximo depois desse) e “1984” para criticar o comunismo soviético, e nisso George Orwell foi implacável. Mas que fique claro que ele também critica o Ocidente. Na famosa conferência em Teerã realizada pelos EUA, a URSS e a Inglaterra discutiram a nova geografia do mundo, ou seja, quem iria ficar com o quê. O Imperialismo americano e o soviético estavam presentes, já que a China ainda estava em processo revolucionário.

Hoje a noção da verdade está comprometida com as fake news, com esse novo ambiente digital em que vivemos. A Internet é um laboratório maravilhoso onde as informações se chocam com a realidade. Boatos, mentiras e verdades são manipulados por ideologias. O uso da tecnologia é usado para espionar, como ficou claro quando Edward Snowden, um ex-agente de inteligência norte-americano, vazou informações de como os Estados Unidos espionam informações de uma maneira extremamente sofisticada.

Podemos dizer que “1984” não está tão longe assim. Estamos vivendo lentamente todo o processo. George Orwell foi aluno de francês de Aldous Huxley, que, numa carta parabenizando pela obra, disse:


“Na próxima geração, acredito que os líderes mundiais descobrirão que o condicionamento infantil e a narcopnose são mais eficientes, como instrumentos de governo, do que clubes e prisões, e que a ânsia por poder pode ser completamente satisfeita sugerindo que as pessoas amando sua servidão como açoitando-os e chutando-os em obediência”. https://www.thevintagenews.com/2017/01/30/aldous-huxley-was-george-orwells-

A pergunta que fica é: qual das “profecias” (Aldous Huxley e George Orwell) está mais correta? Penso  que a intenção de Orwell é apenas fazer uma fábula, e não uma previsão apocalíptica.

Vou logo adiantando o seguinte: você não será o mesmo depois de ler “1984”, de George Orwel, uma fábula distópica simplesmente genial. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 18 junho 2020 | Tags:


< O Sabá das Feiticeiras A Revolução dos Bichos >
1984
autor: George Orwell
editora: Companhia das Letras
tradutor: Alexandre Hubner e Heloísa Jahn

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