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As Confissões do Impostor Félix Krull

Thomas Mann é um escritor recorrente aqui no site dos Bons Livros para Ler. É um autor multifacetado, com uma produção prolífica de ficção e romances Sua galeria de personagens é conhecida por todos aqueles que gostam de uma literatura sofisticada. Thomas Mann recebeu um Prêmio Nobel por causa de seu romance inovador “Buddenbrooks”, publicado em 1901. E seus trabalhos posteriores, como “A Montanha Mágica”, “O Eleito”, “Cabeças Trocadas”, “Morte em Veneza”, entre outros, fizeram-no como o mais produtivo escritor de todos os tempos.

O livro de que falaremos hoje se chama “Confissões do Impostor Felix Krull”. Foi o seu último romance, Thomas Mann veio a morrer pouco depois devido a problemas respiratórios. Dizem que é um livro incompleto, pois o autor faleceu pouco depois. Mas, independentemente de ser ou não incompleto, uma coisa é clara: tem a marca de Thomas Mann.

“Confissões do Impostor Felix Krull” é um trabalho que tem uma dose de humor, foi o único livro desse autor que pode ser classificado de “humorístico”, é uma versão do século XX do clássico romance picaresco. A abordagem do livro é uma crítica social palatável por uma aplicação liberal do humor. Revela a discrepância entre o que as pessoas são e o que pensam que são. Como a abordagem picaresca visa o vício, não a pessoa que possui o vício, o protagonista se torna um herói – ou, para ser mais preciso, um anti-herói. A ficção picaresca é classificada como humor negro, está presa à angústia existencial, se retratada comicamente. O protagonista é um perpétuo estranho que olha para a luz, mas sempre condenado ao lado sombrio da realidade; ele simboliza o indivíduo que é membro da sociedade, mas é alienado e isolado por ela. O pícaro é forçado a sobreviver por qualquer meio que achar disponível, vive em uma ilusão, uma ilusão respeitável em um mundo receptivo, que vive em permanente ilusão. A apresentação, como o título já nos mostra, é uma confissão, uma apresentação subjetiva, na primeira pessoa, dominado pela ilusão e pelo disfarce e máscaras figurativas.

Minha edição da Companhia das Letras tem um posfácio excelente de Mário Luiz Frungillo. Principalmente para aqueles que estudam a literatura alemã com afinco, é uma leitura obrigatória.

Esse livro tem um elemento diferente. Esse livro teve origem em alguns fragmentos publicados por Thomas Mann, em 1909, mesmo antes da “Morte em Veneza”. É um livro picaresco. Talvez isso explique o humor juvenil misturado com a sabedoria e a tolerância que um homem do mundo como Mann alcançou após viver uma vida longa, agitada e imaginativa. O livro se passa na Belle Epoque. A linguagem que o autor se utiliza (como já foi dito) para fazer essas confissões segue o mesmo estilo de quem viveu esse período.

Felix Krull nos é apresentado como tendo um fascínio ao longo da vida por máscaras e artifícios e, quando jovem, ele pensava em se tornar ator. Percebendo que a pretensão da vida real é mais lucrativa e divertida, ele aplica seu talento à representação sempre e quando mais lhe convier. Uma mistura de Casanova e Cândido (Voltaire), ele navega na sociedade em grande parte através de seu charme sexual. 

Vamos ao livro?

“As Confissões do impostor  Felix Krull”, que abre narrando a infância do narrador já mostra um pouco da sua personalidade:  

“...fui um menino saudável e de boa constituição que, nutrido pelo seio de excelente ama, cresceu despertando as maiores esperanças. Mas, depois de reflexões frequentes e profundas, não posso deixar de estabelecer uma consonância entre o meu comportamento indolente e recalcitrante no decorrer do parto, minha má vontade evidente em trocar a escuridão do ventre materno pela claridade do dia, e o pendor e a aptidão extraordinários para o sono que me distinguiam desde pequeno. Disseram-me que fui uma criança tranquila, nem chorona nem irritante, antes dada ao sono e à sonolência num grau muito cômodo para as babás; embora mais tarde sentisse tão atraído pelo mundo e pelas pessoas, a ponto de misturar-me a eles sob os mais diferentes nomes e de tudo fazer para conquista-lhes a estima, à noite quase sempre permanecia na intimidade de minha casa entregue ao sono, adormecia com facilidade e prazer, mesmo sem nenhum cansaço físico, perdia-me por completo num esquecimento sem sonhos e, após uma longa imersão de dez, doze e até catorze horas acordava revigorado e mais satisfeito que depois dos sucessos e contentamento do dia.” (pg 15)

Felix Krull começa suas “confissões”. Em um primeiro momento, nos mostra sua família e sua infância. Ele vem de uma família de classe alta no Vale do Reno; Felix (na tradução quer dizer: o sortudo ou feliz) é filho de um produtor de champanhe de baixíssima qualidade falido, ele tem uma irmã chamada Olympia muito mais velha do que ele. No início ele descreve sobre seu amor de infância a frequentar o mundo da fantasia e sua paixão pelo teatro.

Ele detestava a escola. Não foi à toa que já no início praticava a arte do engano forjando a caligrafia de seu pai para conseguir dispensa alegando alguma doença. Mais tarde, ele passou a “forjar” doenças para que não fosse à escola. Com uma capacidade de domínio corporal, conseguia inventar sintomas imaginários (como náusea e vômito) a ponto de o médico ser convencido de que Felix não criava nenhum artifício, era real. Sua capacidade de atuar era perfeita. À medida que suas confissões são contadas, sabemos, por exemplo, de alguns episódios como o primeiro roubo (de chocolates na confeitaria) e sua primeira experiência sexual com sua empregada doméstica (Genovefa) muito mais velha. Ele menciona o evento como a sua grande alegria pela experiência sexual obtida com uma pessoa comum.

Felix Krull é personagem encantador. Você torce por ele, ele te convence. E no primeiro momento nos é revelado quando Felix vai ao teatro com seu pai para ver uma peça na qual um dos colegas da velha escola do pai está estrelando. Felix é capturado pela atração magnética entre o público e a estrela. Isso se torna maior quando o pai visita os bastidores após o show.

A partir desse momento em que Felix observa como o personagem que o ator interpretou era extremamente confiante e equilibrado. Foi a partir daí que sua percepção do mundo começou a mudar e constatar que a ilusão é a realidade, e que o ilusionista precisa da plateia, assim como a plateia precisa do ilusionista.

“O público que nos rodeava na plateia era formado de burgueses e suas esposas, empregados de comércio, jovens recrutados para um ano de serviço militar e garotas vestidas com blusinhas, e embora me deletasse de um acordo indescritível, eu ainda tinha a presença de espírito e curiosidade o bastante para olhar ao redor, observar os efeitos que as cenas representadas no palco tinham sobre os meus companheiros de divertimento e, com o auxílio de minhas próprias sensações, interpretar a fisionomia das pessoas ali presentes. As fisionomias expressavam estupidez e arrebatamento. Um sorriso de enlevo imbecil brincava nos lábios de cada um, e se o das moças de blusinhas era doce e excitado, o das senhoras tinha a particularidade de revelar uma entrega antes sonolenta e passiva, e o dos homens, ao contrário, expressava aquela benevolência comovida e devota com a qual pais humildes olham para seus filhos brilhantes, cuja existência se eleva muito acima das suas e na qual veem realizados sonhos de sua própria juventude. Quanto aos empregados do comércio e o recrutas, tudo em seus rostos erguidos para o palco estava muito aberto, os olhos, as narinas, a boca. E sorriam.” (pg 31)

“...Sim toda aquela congregação envolta na penumbra parecia um enorme enxame de insetos noturnos que se precipitam mudos, cegos e venturoso para uma chama fulgurante.“(pg 31)

A primeira parte das confissões termina com a falência da família e a perda de sua fábrica de espumantes e o suicídio de seu pai meses depois:

“Lá estava ele, caído no assoalho com roupas abertas, a mão pousada sobre a curvatura do ventre, tendo ao seu lado o objeto luzidio e perigoso com o qual metera uma bala no coração. Nossa criada Genovefa e eu colocamos sobre o sofá. Enquanto a moça ia chamar o médico, minha irmã Olympia continuava a encher a casa com seus gritos, minha mãe não encontrava coragem de sair da sala de jantar para vir ao escritório, e eu permaneci ao lado dos frios despojos de meu genitor, cobrindo os olhos com a mão e lhe pagando o abundante tributo de minhas lágrimas.” (pg 55)

Com a morte do pai, Felix anda pelas ruas de Frankfurt como um flanêur. Viverá diversos relacionamentos; entre eles, com uma prostituta húngara, Rosza. Ao mesmo tempo que se relaciona com todas as prostitutas, desta vez na condição de gigolô, mas um gigolô afável, agradável que condena a violência praticada por alguns amantes. E é nesse ponto em que ele se refere a Rosza como uma grande professora do amor.

 “Quando, porém, nosso diálogo fluía mais abundante, era para trocarmos elogios e louvores, pois o que prometemos um ao outro na primeira prova a que nos submetemos teve ampla confirmação, e minha mestra assegurou-me várias vezes, sem ser perguntada, que minha habilidade e minha virtude amorosa superaram em muito suas mais belas expectativas.” (pg 107)

A beleza de Felix, somada a uma arrogância e autoconfiança, que não seria tolerada por uma pessoa sem o menor talento, dava a ele uma capacidade de subir a escada social e frequentar todos os círculos sociais da sociedade. Ele é extraordinariamente empático. Ele é capaz de entender como os outros se sentem e o que querem, e depois agir em conformidade. 

É por isso que ele se torna um homem de confiança tão bom. Chegamos a acreditar nele. No entanto, no seu caso, ele usa essa capacidade para atingir seus próprios fins, e não para beneficiar os outros. Resumindo, podemos dizer que Felix é um artista experiente que não cria suas próprias obras, mas imita as de outras pessoas, nas quais a arte consiste na autoapresentação. Felix Krull sempre assume papéis diferentes, assim como o trabalho do ator. No espírito de Schopenhauer, que vê o mundo como uma representação, Felix também transforma a vida em uma representação e o mundo em seu palco.

Seu tio havia conseguido um emprego em Paris. Na viagem de trem, um evento curioso acontece: uma mulher havia deixado algumas joias valiosas na sua própria bolsa durante uma inspeção na alfândega. À medida que ele narra este evento, chegamos à conclusão de que há algo de estranho, e onde reside a estranheza? No relato, que não é confiável ele engana o leitor com a versão que ele dá ao fatos por ele vivido. Claro que ele roubou. Mas sua narrativa diz que não, o que revela seu ato de enganar.

Quando chega ao hotel Saint James and Albany, onde ele vai trabalhar, conhece o seu companheiro de dormitório e de beliche, chamado Stanko. Felix quer vender as joias, e seu amigo sugere que ele vá a um lojista chamado Pierre Jean que compra joias valiosas. Felix quer trocá-las por dinheiro. Quando se apresenta, uma negociação difícil se estabelece até que ele consegue o preço que deseja.

No hotel sua função será a de substituir o ascensorista chamado Armand, que estava saindo do hotel. E como resultado acabou recebendo o nome do antigo. Felix a partir de agora se chama Armand. Mais tarde ele acaba sendo promovido a garçom. E como garçom ele conhece alguns personagens interessantes, como Madame Houpflé, Eleanor Twentyman, Lord Kilmarnock e o marquês de Venosta.

Quando Felix começa a trabalhar no hotel de luxo em Paris como ascensorista e logo depois como garçom, ele observa a movimentação dos hóspedes. E vemos a expressão chamada de “teoria da permutabilidade”. E o que vem ser isso? É quando o protagonista chega a conclusão de que várias daquelas pessoas poderiam permutar entre si suas posições sem que ninguém destoasse do papel.

Madame Houpfé (Diane Philibertt), por exemplo, é uma mulher lasciva, com pendor para a perversão. É escritora de verdade, (provavelmente uma típica representante do esteticismo fin-de siècle). É esposa de um rico comerciante: “louças sanitárias Houpfé”. É hóspede do hotel onde Felix (Armand) trabalha. Sua compulsão psicológica de ser humilhada é percebida através de seu caso com Armand, e ela o perdoa por ter roubado e vendido suas joias na alfândega em sua viagem a Paris (lembram-se?). Felix diz:

“- Ouça, Diane! Quero lhe confessar uma coisa que talvez a compense daquilo que me nego a fazer por uma questão de gosto. Diga-me: quando chegou aqui e desfez suas malas, a grande, não deu pela falta de nada?

- Dar pela falta? Não. Ah, sim! Como é que você sabe?

- Uma caixinha?

- Sim, uma caixinha! Com joias. Mas como você sabe?

- Eu a tirei

 - Tirou? Quando?

-Nós estávamos a lado na alfândega. Você estava ocupada e eu a peguei!

 Você a roubou? Você é um ladrão? Mas isso é soberbo! Que humilhação maravilhosa, excitante ao extremo, um sonho de humilhação! Não apenas um criado – um ladrão vulgar!

- Eu sabia que isso alegraria. Mas naquele momento não sabia, e preciso lhe pedir perdão. Não podia prever que nos amaríamos. Caso contrário não lhe causaria a preocupação e o horror de perder seu colar de topázios, os brilhantes e todo resto.

- Preocupação? Horror? Perder? Caríssimo, Julliete, minha criada, os procurou por algum tempo. Eu não me preocupei nem por instante com o saque. De que me serve ele? Você o roubou, meu querido. Ele é seu. Guarde-o para você. Aliás, o que vai fazer com ele? Não me importa. Meu marido, que vem me buscar amanhã, é tão rico! Ele fabrica louças sanitárias, você tem de saber. Todo mundo precisa delas, mas como você bem pode imaginar. Louças sanitárias, Houpflé, de Estrasburgo, são muito procuradas, são vendidas para os quatro cantos do mundo. Ele me cobre com um excesso de joias, por pura consciência pesada. Ele me cobrirá de coisas três vezes mais bonitas que as que você roubou. Ah, o ladrão é muito mais precioso para mim que os objetos roubados! Hermés! Ele não quem é, e é o próprio! Hermés, Hermés/ Armand?

 - Sim?

- Tive uma ideia maravilhosa.

- Qual?

-Armand você deve me roubar. Aqui, diante dos meus olhos. Quer dizer, eu fecho os olhos e finjo para nós dois que estou dormindo. Mas quero observá-lo às escondidas enquanto rouba. Levante-se daí, deus ladrão, e roube! Você nem de longe me roubou tudo o que eu trouxe comigo, e pelos poucos dias que faltavam para meu marido vir me buscar eu não guardei nada no bureau. Naquele armarinho de canto, na gaveta de cima à direita está a chave de minha cômoda. Nela, embaixo das roupas, você encontrará tudo. Até o dinheiro em espécie. Ande pelo quarto com passos de gato e furte! Você vai dar esta prova de amor a sua Diane, não vai?

- Mas, minha linda menina (eu a chamo assim porque você gosta de ouvir-me a dizer isso) e nada cavalheiro depois de tudo que nos tornamos um para o outro.

- Tolo! Será a mais excitante realização do nosso amor! (pg161, 162)

Temos a jovem Eleanor Twentyman, que lhe propõe para que fujam juntos e ele a engravide a fim de forçar um casamento e obter a aceitação dos pais. Lord Kilmarnock, que lhe oferece fazer dele seu herdeiro caso aceite se tornar seu companheiro de vida sob o disfarce de um mordomo, ou mesmo de um filho adotivo.

Temos o Marquês de Venosta, originário de Luxemburgo, que está em Paris para desenvolver seus dotes artísticos. Ao envolver-se com Zaza, uma atriz de teatro de revista, acaba se apaixonando perdidamente por ela. Estava disposto a casar-se com ela de qualquer maneira, mas enfrentava a oposição de seus pais, cuja família era da mais alta sociedade. Seus pais, temendo que ele se casasse com Zaza, propõem ao filho uma viagem ao redor do mundo. O Marquês de Venosta não queria de jeito nenhum. E descobre que Felix seria a grande arma. Para isso, faz uma proposta para que ele se passasse pelo Marquês e enganasse seus pais com a condição de enviar uma correspondência para seus pais das diversas partes do mundo que visitar. E mais uma vez Felix, que antes era Armand, agora assume a identidade de Marquês. Como sempre, possuía a habilidade de assumir identidades diferentes, um exímio falsificador de caligrafia. Assume um lugar de perfeição. Felix assume a personalidade de Venosta e parte para Lisboa, a primeira etapa de sua viagem para a Argentina.

Quando viaja para Lisboa conhece Kuckcuk (cujo nome em inglês lembra cuckold, que significa corno), um acadêmico português, que é diretor de um museu. Por meio de um encontro casual em um trem, Felix conhece sua filha Susana e sua esposa Maria Pia. Ambas as mulheres acabam desenvolvendo sentimentos por Felix, que dirige seus encantos sedutores para eles.

 Fico por aqui. E sugiro a leitura desse autor que é um dos grandes expoentes não só da literatura alemã, mas da literatura mundial. “As Confissões do Impostor Felix Krull”, de Thomas Mann, merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 06 março 2020 (Atualizado: 06 de março de 2020) | Tags: Romance


< O Lobo da Estepe Estão matando os humoristas >
As Confissões do Impostor Félix Krull
autor: Thomas Mann
editora: Companhia das letras
gênero: Romance;

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