Um Amor
Tenho que reconhecer que adoro o que faço. Leio livros dos mais diversos autores, nacionais e de outras nacionalidades, e a partir daí eu coloco na tela do computador minhas impressões sobre eles. Pergunto: quer coisa melhor? Reconheço que existem contraindicações. Quando lemos em um ritmo intenso, ficamos sempre no andar de cima da imaginação e esquecemos um pouco o andar onde transita o dia a dia. Mas mesmo assim devo dizer: adoro o que faço. O livro “Um Amor”, do escritor William Soares, por exemplo, foi um desses livros que me pegou de primeira. E, além do mais, é um tema que me interessa particularmente. Os doze contos são relatos sobre o amor, todos eles ambientados na cidade do Rio de Janeiro. A melhor definição de amor que eu já li foi do escritor Octavio Paz, quando diz:
O amor é uma aposta extravagante na liberdade, pois o livre-arbítrio transforma uma atração involuntária entre duas pessoas em união voluntária.”
No conto “Poliamor”, me veio à cabeça a concepção de Octavio Paz sobre o erotismo do Marquês de Sade, quando uma personagem diz:
Eu não estou presa a nenhuma etiqueta. Nenhum desses rótulos que você me aprisiona. Eu amo sem limitações. Sou dona do meu corpo. Dou para quem quiser. Vou para cama com um, com dois, com três. Não me importo com o tamanho da cama, só o tamanho do meu desejo. Eu namoro homem, mulher, tudo ao mesmo tempo, e não tenho tempo a perder com a minha vida.” (pg 91)
A lembrança de Sade me veio no desfecho da história. Sade, nos diz Paz, promoveu a “equivalência entre criação e destruição” para o mundo das sensações, lançou uma ética negativa, que não apenas permite o crime sexual como o obriga. Um falso domínio sobre o desejo e de ilusão de liberdade. E o fim do conto “Poliamor” é a exacerbação desse desejo. O conto “Entre dois amores”, para mim, é o mais forte. Um homem casado cuja mulher lhe dedicava o melhor de si, até que uma segunda mulher aparece. Haviam se conhecido quando eram mais jovens. Os dois apreciam as mesmas ideias e gostos culturais. Até que um dia acontece o que já era previsto. Ele se declara para a segunda mulher. Decide sair de casa para se dedicar à segunda mulher até que o inesperado acontece. Querem saber o que acontece? Você precisa ler “Um Amor”. No conto “Flores de Jacinto”, uma mulher observa no espelho o peso da idade e as primeiras rugas que aparecem em seu rosto. Sua vida sempre foi perfeita. Relembra os anos 1970, quando ainda tinha vinte poucos anos, solteira, sem namorados, iniciando a faculdade de sociologia, falava muito bem o francês, mas precisava do inglês. Apareceu sua professora, uma inglesa com trejeitos e sotaque carregadíssimo. As coisas andavam muito mal, pensou várias vezes em abandonar o curso. Suas notas não estavam nada bem. Até que elas resolvem, numa tarde de outono chuvosa, ir até a Confeitaria Colombo, na rua Gonçalves Dias, no Centro. Naquela tarde conversaram sobre vários temas. Com o tempo, o curso de inglês começou a ficar mais agradável e o aprendizado mais eficiente. Em seus encontros, que começaram a ficar frequentes, a professora lia trechos de Dylan Thomas, Virgínia Woolf, James Joyce, entre outros. No entanto, o temperamento da professora era um problema. Até que, certa vez, ela aceita se encontrar com sua professora. Ela chega e a professora lhe dá um presente, flores de Jacinto, que na língua inglesa significa “estar com o coração alegre”. Apesar do frio, havia algo caloroso no ar, algo estranho, um silêncio infinito entre as duas:
Na penumbra ela contemplou a inglesa desnudar a sua alvura, enquanto tudo se apascentava no hemisfério. Mesmo sem controlar mais, deteve-se, como se os astros, a noite e o silêncio tivessem feito um pacto. Depois, se entregou, tímida e inexperiente, aos apelos do corpo.” (pg 68)
Até que aconteceu o inevitável: a professora de inglês voltou para o seu país. A brasileira se formou em sociologia, comprou um apartamento, escreveu alguns livros, fez algumas viagens. E o tempo reprimiu os desejos. Os anos passaram-se, até que um dia o interfone tocou. Não vai ter spoiler. Lacan desmistifica o mito do amor ideal ao criar o termo "hainamoration", um neologismo que junta ódio (haine) e amor (amour), às vezes traduzido como "amódio" (Lacan, 19721973/1982: 122), para ressaltar a impossibilidade de existência de um amor sem ódio. Os psicólogos dão um caráter mais rebuscado àquilo que os poetas dizem de modo mais simples. O poeta romano Caio Valério Cátulo, ou simplesmente Cátulo, diz em um poema famoso: “Amo e odeio ao mesmo tempo / Por quê? / Não sei, / mas eu disso padeço”. É maravilhoso que, em um simples verso, diz o que os psicólogos e os psicanalistas precisam de mil páginas para dizer. William Soares dos Santos é um escritor que conhece profundamente o seu ofício de escritor. Seu livro “Um Amor” reúne doze contos muito bem elaborados e com muita elegância na escrita, em que o amor é tratado com a simplicidade de um poeta. Por isso indico “Um Amor”, de William Soares dos Santos, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.